Deborah Colker reflete sobre doenças raras, orixás e até Jesus no espetáculo 'Cura'

Projeto nasceu a partir de experiência íntima da artista com seu neto, portador de doença rara de pele

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São Paulo

Uma voz de criança abre "Cura", novo espetáculo de Deborah Colker, que estreia em São Paulo no teatro Alfa. "Mas, quando ele nasceu, ela falou que coisa mais feia! O garoto nasceu se coçando, cheio de bolhas e machucados por todo o corpo."

Quem fala é o neto de Colker, Téo, de 12 anos, contando a história de Obaluaê, orixá da doença e da cura. Vem de Téo a força que move a dança –o espetáculo começou a ser concebido oficialmente há quatro anos, mas, para Colker, nasceu há 12, junto com o neto e a descoberta de ele ser portador de epidermólise bolhosa, doença rara causadora de bolhas e descolamento da pele por causa de um defeito no gene que produz colágeno.

Criada a partir da experiência íntima da coreógrafa, a dança vai além da história pessoal. "Surgiu de uma indignação minha, de não aceitar que a cura não existe. Mas, ao buscar a cura do que não tem cura e fazer uma ponte entre a ciência e a fé, ultrapassa minha particularidade", diz Colker.

No final de 2017, ela convidou o escritor, dramaturgo e rabino Nilton Bonder para fazer o espetáculo. Na época, ninguém imaginaria sua estreia sob o impacto da contaminação e das mortes causadas pela pandemia.

Como bom rabino, Bonder contou várias histórias tradicionais para a coreógrafa e amiga, mas a de Obaluaê veio de outra fonte. Em 2019, ao voltar de uma viagem a Moçambique, Colker e sua companhia foram para Salvador, onde tiveram aulas com Zebrinha, coreógrafo do Balé Folclórico da Bahia. Enquanto ensinava os movimentos dos orixás, Zebrinha falou de Obaluaê. "Naquele momento, eu ainda não sabia que o traria para o espetáculo e seria o Téo quem iria contar isso", diz ela.

É quase uma inversão da forma milenar de transmissão de histórias e conhecimentos, segundo Bonder. Em vez de a avó contar para a mãe, e esta, para os filhos, é o neto quem conta uma história para a avó, como se a estivesse acalmando e ninando.

Além de Téo, uma rota para chegar a "Cura" foi "Cão Sem Plumas", espetáculo de 2017 baseado no poema de João Cabral de Melo Neto. Nesta coreografia, Colker, famosa por pôr seus bailarinos dançando suspensos no ar, se voltou mais para a terra. "Cão Sem Plumas" também fala da indignação com o que não deveria existir. "Como algo vivo, como os homens e o rio do poema de João Cabral, não tem um lugar na vida? Como pessoas com doenças raras vão viver isoladas, escondidas?", pergunta ela.

A revolta da coreografia baseada no poema de João Cabral chega em "Cura" transformada pela gratidão. "Sou muito grata por ter o Téo na minha vida, ele me tornou uma pessoa mais evoluída. Sempre gostei de indígena, de gay, de mulher, de negro, de liberdade, sempre fui contra a discriminação, mas é diferente quando acontece com você."

Na dramaturgia de "Cura", personagens emblemáticos se sucedem ao orixá Obaluaê. Um deles é Stephen Hawking. O físico recebeu um diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica quando tinha 21 anos e morreu, aos 76, em 2018. Para levar a questão ao palco, a coreógrafa trabalhou a imobilidade, uma das consequências dessa doença degenerativa, como uma guerra interna. Também trouxe à cena outras doenças, disfunções que afetam o controle neuromotor. Todas dançadas pelos 13 bailarinos com um figurino que é a pele em carne viva.

Outro personagem é Leonard Cohen, paixão de Colker, que já quis fazer um espetáculo só com músicas dele. Em "Cura", ela usa a canção "You Want It Darker", na qual, pouco antes de morrer, o compositor negocia com Deus suas horas finais.

Já a coreógrafa faz um pedido cantado de cura, quase uma súplica, dançada de joelhos. "Engraçado, porque sou judia, e judeu não se ajoelha", diz.

Jesus também entra nessa dança ecumênica, representado pelo andar sobre as águas. "Foi inclusive uma sugestão do rabino", conta Bonder. "Jesus é o grande médico do Ocidente, aquele que atendia as pessoas no sufoco, um atendimento para nós tão caro nesse momento de pandemia", diz ele, que canta na trilha versos bíblicos com o pedido de Moisés para Deus curar a lepra de sua irmã Miriam.

Com exceção da canção de Cohen, todas as músicas de "Cura" são de Carlinhos Brown. "Carlinhos é mais conhecido como timbaleiro, percussionistas, as pessoas ficaram chapadas com o trabalho feito para o espetáculo", diz Colker.

Criada entre encontros remotos e presenciais, no Rio de Janeiro e em Salvador, a trilha resultou em uma afro-sinfonia. "Foi uma oportunidade que não tenho há muito tempo de poder expressar a maior herança que a Bahia me deu, ser um compositor popular que cria ‘de ouvido’ e juntar isso com muito estudo e experimentação", diz Brown.

"Cura" também é construída por elementos de danças indígenas, pajelanças curativas. E ciência de ponta. O DNA, a célula, o Crisper, técnica de edição do material genético. "Minha galera VIP não são mais os atores globais, são os médicos, cientistas. Eles se parecem muito com os artistas, são aventureiros, querem desvendar mistérios", diz Colker.

Segundo ela, é importante ressaltar que, apesar de ter entrado em outro estágio de compreensão e aceitação, não desistiu de nada. "Fiz essa ponte entre ciência e fé e me aproximei ainda mais da ciência", diz.

A diferença, agora, é imaginar outros recursos curativos. Como a alegria, buscada fisicamente em Moçambique e nas danças africanas.

A obra não apresenta uma solução definitiva para o que não pode ser curado, mas mostra como a arte também pode curar. "Assim como a espiritualidade, a criatividade nos leva para um lugar mais amplo. O prazer expande, a dor contrai. A arte tem esse poder quase medicinal de tirar a pessoa desse lugar contrativo para funcionar também como uma espécie de cura", diz Bonder.

Cura

  • Quando De 4/11 até 14/11; ter. a sex., às 20h30; sáb., às 20h; dom., às 18h
  • Onde Teatro Alfa - Rua Bento Branco de Andrade Filho, 722
  • Preço Ingressos de R$ 50 até R$ 200
  • Classificação Livre
  • Direção Deborah Colker
  • Informações e vendas https://bileto.sympla.com.br/event/69149/d/111295
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