Descrição de chapéu The New York Times

Saiba como Abba voltará aos palcos em versão digital com hologramas para novo disco

Grupo sueco retorna com 'Voyage', que traz a marca inconfundível da banda, apesar do registro envelhecido

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Elisabeth Vincentelli
Estocolmo | The New York Times

A pequena e sossegada ilha de Skeppsholmen abriga alguns dos tesouros artísticos da capital sueca –o museu Moderna Museet, o grupo de teatro Teater Galeasen e o armazém de tijolos vermelhos reformado em que Benny Andersson tem seu estúdio, a apenas alguns passos de uma esplanada à beira-mar.

Ele coloca na boca um pedaço de snus, um produto de tabaco parecido com o rapé, enquanto Bjorn Ulvaeus toma um café, em uma das salas ensolaradas do estúdio, certo dia no começo de outubro. Os dois músicos estavam cercados por um piano de cauda, uma pequena coleção de sintetizadores e uma coleção de fotos emolduradas posicionadas por trás de uma tela de computador.

Pela primeira vez desde o governo Reagan, a dupla estava discutindo um disco novo de sua banda, o Abba –um álbum que um dos maiores grupos pop da história conseguiu de alguma maneira gravar em segredo, com os quatro integrantes originais se congregando décadas depois de fazerem sua última apresentação pública.

Banda ABBA, após vencer a versão sueca do concurso Eurovision Song Contest, em fevereiro de 1974 - Olle Lindeborg/TT News Agency/REUTERS

"Fizemos uma pausa no começo de 1982 e agora decidimos que era hora de encerrar isso", o grupo anunciou em um comunicado em setembro. A resposta foi estrondosa. "O Abba é uma embarcação diferente, não é?", disse Ulvaeus, em tom surpreso, na sala do estúdio em que estávamos conversando, a apenas alguns passos de distância do espaço um pouco maior em que eles gravaram o LP clandestino. "Fizemos isso e estamos nas primeiras páginas de jornais do mundo todo."

Num país conhecido por produzir figuras imponentes na música pop (Avicii, o produtor Max Martin, Robyn, Roxette), o Abba continua a ser o maior sucesso, e tem até um museu permanente. De 1973 a 1981, o quarteto –formado por Andersson, Ulvaeus e pelas cantoras Agnetha Faltskog e Anni-Frid Lyngstad– lançou oito discos de estúdio repletos de melodias, harmonias e arranjos de cordas meticulosamente trabalhados, que resultaram em 20 hits na parada de sucessos Billboard 100, venderam dezenas de milhões de cópias em todo o mundo e criaram uma base de fãs apaixonados.

Mas o impacto da banda, e a mudança de paradigma que ela causou, não podem ser medidos apenas em números. O grupo sempre foi conhecido por correr riscos com a tecnologia e com o uso de suas canções. A partir da metade da década de 1970, esteve entre os primeiros conjuntos a fazer filmes curtos promocionais elaborados –agora nós os chamamos de vídeos—, a maioria dos quais dirigidos por Lasse Hallstrom.

"The Visitors", lançado por eles em 1981, é visto pela maioria dos estudiosos como o primeiro lançamento comercial em CD, no ano de 1981. "Mamma Mia!", um musical com canções do grupo produzido em 1999, combinava os sucessos do Abba a uma trama que nada tinha a ver com a banda e gerou uma sucessão de imitações e duas adaptações para o cinema que nos ofereceram o espetáculo de Meryl Streep cantando "Dancing Queen".

Agora, o Abba decidiu pôr em risco o que talvez seja o seu ativo mais precioso –seu legado—, ao não só lançar um novo álbum em seu catálogo como produzir um show para os palcos que não vai incluir a presença de nenhum dos criadores da banda. A partir de maio do ano que vem, num espaço construído especialmente para isso em Londres, a banda vai se apresentar como avatares (no caso, "abbatares") altamente sofisticados, concebidos para reproduzir o look que eles tinham em 1979 –a era dos cabelos frisados e dos figurinos de palco extravagantes.

Andersson, de 74 anos, e Ulvaeus, de 76, dois dos homens mais discretos num setor em que o estresse costuma ser alto, disseram ter ficado genuinamente surpresos, e talvez até um pouco aliviados, diante da empolgação com que o anúncio de seu novo disco foi recebido. ("Voyage", de dez faixas, e também o nome do show ao vivo que entrará em cartaz em 2022, chega ao mercado no dia 5 de novembro, pela gravadora Capitol.)

"Não tínhamos ideia de que seria tão bem recebido", disse Ulvaeus. "Você decide correr o risco e pode levar uma sova." Era difícil dizer se ele estava citando de propósito parte do título de uma das canções mais famosas do Abba; o humor seco é uma das especialidades dos dois.

Mas é provável que eles fizessem alguma ideia de que reunir a banda atrairia interesse. Desde que suspendeu suas atividades, em 1982, o Abba continuou a prosperar. O diálogo com relação à música pop mudou muito ao longo das décadas e ajudou a banda a superar o rótulo de "europop cafona" que costumava ser usado para a definir em seu auge, na década de 1970.

O crítico musical americano Robert Christgau escreveu, em 1979, que "enfim encontramos o inimigo –e o inimigo são eles". O Abba agora é amplamente respeitado como criador de um pop artesanal sofisticado, e sua popularidade duradoura transcende fronteiras e gerações.

Porque não havia pressão por uma reunião, a dupla de compositores disse que não existia um grande plano para o álbum. Foi algo que simplesmente aconteceu quando os quatro amigos perceberam que ainda gostavam de fazer música juntos.

Tudo começou cerca de cinco anos atrás, quando Simon Fuller, produtor que criou os programas de TV "Idol" e descobriu as Spice Girls, propôs um show estrelado por reproduções tridimensionais dos membros da banda, "cantando" com as faixas originais de vocal mas acompanhados no palco por uma banda ao vivo.

"Para mim era uma escolha fácil dar a eles a oportunidade de ser a primeira banda importante a abraçar de verdade as possibilidades do mundo virtual", afirmou Fuller, em um email. "A música do Abba atrai todas as gerações, de um modo que não acontecia com qualquer outro grupo desde os Beatles."

O projeto também oferecia benefícios práticos atraentes para pessoas que não estavam mais dispostas a se submeter aos sacrifícios dos shows ao vivo. "O que nos interessou foi a ideia de que poderíamos colocar essas versões virtuais para trabalhar enquanto ficamos em casa cozinhando ou saímos para passear com o cachorro", disse Andersson.

A dupla viajou a Las Vegas para ver os hologramas usados em "Michael Jackson One", do Cirque de Soleil, e sua principal conclusão foi a de que a qualidade do produto teria de ser um milhão de vezes melhor. A Industrial Light & Magic, companhia de efeitos especiais cinematográficos famosa por "Star Wars", garantiu a eles que isso era possível. (Fuller já não está envolvido no projeto.)

Naturalmente, as "meninas", como aparentemente todo mundo na banda carinhosamente chama Faltskog, de 71 anos, e Lyngstad, de 75, tinham de estar envolvidas, especialmente porque o projeto requereria semanas de captura de movimentos dos cantores por câmeras. "E elas disseram que aceitavam, se fosse só isso", recorda Andersson. "Não queremos fazer turnês. Não queremos dar entrevistas na TV ou falar com jornalistas." (O que explica por que não fizeram comentários para esta reportagem.)

Andersson e Ulvaeus decidiram que os "abbatares" precisavam de algumas composições novas, porque era isso que teria acontecido se a banda estivesse fazendo uma nova turnê naquela época. Em 2017, Faltskog, que vive perto de Estocolmo, e Lyngstad, que mora na Suíça, foram ao estúdio RMV, a cem metros da base de Andersson em Skeppsholmen. Lá gravaram seus vocais para a balada "I Still Have Faith in You" e para a faixa disco "Don’t Shut me Down". As duas cantoras, que tinham passado anos afastadas da música, não enfrentaram dificuldades para se readaptar.

"Elas chegaram e, pronto, imediatamente mostraram que ainda eram capazes de fazer aquilo", disse Andersson. "Maravilhoso."

Faltskog e Lyngstad não foram as únicas pessoas que tiveram de voltar ao trabalho. "Benny me ligou para me perguntar se eu podia vir ao estúdio, para gravar uma ou duas canções com a velha banda", disse Lasse Wellander, guitarrista que trabalha com o grupo desde o álbum "Abba", de 1975, em um email. "No começo não entendi o que ele queria dizer, mas depois percebi que estava mesmo falando do Abba!"

O plano original era fazer só aquelas duas faixas, mas eles continuaram gravando. "Nós discutimos se não devíamos gravar mais algumas canções, só por diversão", recorda Andersson. "E as meninas disseram que sim, seria divertido. E elas vieram e gravamos cinco músicas. E aí propusemos fazer algumas mais, e quem sabe lançar um álbum."

Para Andersson, criar composições novas para o Abba foi uma virada bem-vinda. "Acho que é meio chato trabalhar só em reciclagem", ele disse, o que sem querer causou um pequeno atrito com Ulvaeus –o único desacordo entre eles durante o dia—, com relação ao termo que ele decidiu usar.

"Você diz que é reciclagem, eu digo que é uma forma transcendente de contar histórias", disse Ulvaeus. "É possível fazer alguma coisa elevada em outra plataforma, e é isso que ‘Voyage’ é. Contar uma história em outra plataforma. Também é isso que ‘Mamma Mia!’ foi", ele disse, se referindo ao musical. "Não é reciclagem."

De certa forma, a discussão foi puro Abba –o tom era leve, mas as preocupações subjacentes eram profundas. Outra oportunidade de debate foi a discussão entre os dois sobre seus "abbatares". Andersson contou que Ulvaeus pediu uma mudança nos cabelos de seus sucedâneos digitais porque há limites para o quanto alguém realmente deseja imitar 1979. Quando comentei que essa era uma boa maneira de reescrever um pedacinho da história mas manter a fidelidade ao seu espírito, Ulvaeus respondeu, com um leve sorriso, que "sim, essa é uma questão existencial interessante".

(Ulvaeus, conhecido na Suécia por seu compromisso para com o ateísmo e o humanismo, gosta desse tipo de questão, e mais tarde me perguntou se eu achava que a Constituição americana era forte o bastante para suportar mais um presidente republicano.)

O elo entre Andersson e Ulvaeus sobreviveu aos divórcios na banda e à pressão causada pelo desdém dos críticos quanto ao trabalho deles. (Para aqueles que esqueceram, Andersson era casado com Lyngstad, e Ulvaeus com Faltskog.) Os dois compõem juntos desde 1966, e suas colaborações pós-Abba incluem canções para a banda de Andersson e para os musicais "Chess" e "Kristina from Duvemåla", um épico sobre imigrantes suecos nos Estados Unidos no século 19, que tem entre seus pontos altos uma raríssima canção sobre piolhos.

Embora a divisão de funções entre os dois fosse mais fluida na década de 1970, agora ela é bem clara. Andersson cria melodias e grava demos em seu estúdio em Skeppsholmen e envia o material para Ulvaeus, que escreve as letras. Perguntado sobre o grau de sofisticação das demos, Andersson se ofereceu para mostrar a de "Don’t Shut Me Down" e foi ao seu computador. Mas não conseguiu encontrar a faixa entre as dezenas de arquivos, e fez uma busca por "Tina Charles", já que a nova faixa do Abba tem algo que lembra um dos hits da cantora britânica.

Ele por fim encontrou não a demo, mas sim uma gravação dos backing vocals, e a mostrou em seu imaculado sistema de som, oferecendo um excelente exemplo de como as harmonias de Faltskog e Lyngstad são cruciais para o Abba.

"Todos os grupos de sucesso desde a década de 1970 tinham mais de um cantor", disse Andersson, mencionando o Eagles e o Fleetwood Mac, além do Abba. "Você ouve Frida cantar uma canção, e depois Agnetha canta –é como se fôssemos duas bandas. O fato de que temos duas cantoras ajuda muito a dinâmica. E quando elas cantam juntas..."

As harmonias da banda em "Voyage" trazem a marca inconfundível do Abba, ainda que o registro seja um pouco mais grave do que no passado. A diferença não se deve apenas à idade. "Nós costumávamos forçar que elas cantassem o mais agudo que pudessem na maioria das canções, porque isso dava energia às faixas", disse Andersson. "Eu diria que insistíamos, não forçávamos", acrescentou Ulvaeus.

Muita coisa mudou na música pop nos últimos 40 anos, mas "Voyage" não tenta parecer qualquer outra coisa que não uma gravação do Abba. "Os discos novos que você ouve são sempre tão lisos", disse Andersson. "Nada se mexe, exceto o ritmo muito preciso. Não trabalho assim. Faço as coisas à mão livre."

Essa abordagem faz com que o novo algum pareça eterno. "Hoje em dia é possível editar qualquer coisa, mas eles não o fizeram", disse, por telefone, Per Lindvall, baterista que colabora com Andersson e Ulvaeus desde a canção "Super Trouper", em 1980, e toca no novo disco. "Eles também não exageram na correção eletrônica dos vocais. Tudo isso é parte do som único do Abba."

Quatro décadas atrás, essa jornada longa e improvável era inimaginável para os quatro suecos. "Você tem que entender o quanto a coisa parecia impossível, até logo antes de começarmos a fazer sucesso na Inglaterra e nos Estados Unidos", disse Ulvaeus sobre o cenário pop antes que a internet o globalizasse. "Não era algo que pudéssemos prever."

Mas o Abba não só derrubou barreiras para músicos de todo o mundo como o fez com o pragmatismo sensato dos artesãos –e é isso que os integrantes continuam a ser, no fundo. "A verdade é que sempre encaramos a coisa como um trabalho cotidiano, mesmo na época", disse Andersson. "Compúnhamos as canções, com a esperança de que algo de bom saísse delas, íamos ao estúdio gravar. E em seguida compúnhamos mais. Exatamente como agora, o que importa é tentar criar algo bom, e ver o que acontece."

Tradução de Paulo Migliacci.

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