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Artes Cênicas

'Sueño', de Newton Moreno, retrata com boas atuações a história dos latinos

Peça é apresentada no João Caetano, que nos dá a imagem de um teatro que tenta se levantar do pesadelo de Bolsonaro

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Sueño

  • Quando Ter. a dom., às 18h. Até 5/12
  • Onde Teatro Municipal João Caetano - r. Borges Lagoa, 650, Vila Clementino, São Paulo
  • Preço Grátis
  • Elenco Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco e Paulo de Pontes
  • Direção Newton Moreno

Como é regra com Newton Moreno, "Sueño" não é a peça esperada, previsível, sobre a história recente da América Latina.

O autor e diretor não teme abraçar a metáfora mais incômoda, para fazer com que as consequências do silêncio latino-americano sobre seu passado, principalmente aquele do Brasil, mais até que o do Chile retratado no espetáculo, venham à tona.

Calar sobre o que aconteceu nas ditaduras leva ao ressurgimento dos horrores no presente —é um sumário que é possível tirar de "Sueño", no final das três horas de apresentação.

Curiosamente, remete aos "sonhos" de Shakespeare, não àquele do espanhol Calderón de la Barca. Numa América Latina tão colonizada, seguidamente expropriada, ainda é o dramaturgo inglês que dá a chave, ao menos para Moreno, um dos principais autores brasileiros de sua geração.

Logo de cara, faz até um catálogo de versos shakespearianos sobre o tema, como "ser ou não ser, eis a questão [...] dormir, talvez sonhar". Ou "somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos; e nossa breve vida é cercada pelo sono". Ou "nunca mais dormirei; Macbeth matou o sono".

"A Vida É Sonho", conhecida da montagem de Gabriel Villela, não abre tantas ou pelo menos as mesmas portas.

O Shakespeare de "Sonho de uma Noite de Verão" é até personagem, assim como o diretor da peça dentro da peça —com sua própria peça dentro da peça, aliás— reflete o próprio Moreno. São tantos espelhos que a apresentação vai acumulando, entre sonhos e realidades, que é difícil acompanhar.

A peça, explica o autor no programa, "relembra como a ditadura é destruidora de sonhos (de uma família, de artistas, de um continente) e semeia pesadelos futuros, pelo ponto de vista de um diretor que vê seu projeto de encenação de 'Sonho' adiado pelo golpe de Pinochet".

A ideia obviamente não é seguir trilha linear ou racional para os personagens e para a América Latina, mas retratá-los com suas contradições amontoadas e seus laços familiares —e com muitos momentos de brilho, dos atores da peça.

É o caso de Denise Weinberg, como a mãe alcóolatra, decadente e conivente, depois avó, que é atravessada pela monstruosidade em seu país e no interior de sua própria família, elite tradicional. Personagem que pouco a pouco se desespera, ri e chora no mesmo grau e quase ao mesmo tempo.

A filha e neta, Michelle Boesche, uma atriz que se rebela, consegue em diversas cenas contrastar beleza e vivacidade ao horror, dando concretude ao melodrama que vive e, ao mesmo tempo, impedindo que se torne algo intratável.

Também o militar criminoso de Leopoldo Pacheco, que aproveita as muitas deixas deixadas pelo autor para dar forma ao monstro, um assassino que tem motivo e loucura.

O "meta-diretor" de José Roberto Jardim é inicialmente um narrador quase neutro, contemplativo e destacado, identificando-se com os espectadores e fazendo que se identifiquem com ele. Mas também ele é mais e mais puxado para o redemoinho, carregando o público e exprimindo fisicamente suas consequências.

Paulo de Pontes, já veterano das peças memoráveis de Moreno com o grupo Os Fofos Encenam, é aquele que escracha a pompa que por vezes ameaça o espetáculo, seja como Shakespeare, seja como um mineiro-ator que vive o tecelão tornado asno na peça dentro da peça. É apoiado, para tanto, por Simone Evaristo.

Mas não se pode dizer que "Sueño" já estivesse pronta e acabada, na apresentação vista, na segunda semana de sua curta primeira temporada.

Se o "Sonho" de Shakespeare já era confuso o bastante, com suas cinco narrativas paralelas, o de Moreno acrescenta outras sem oferecer uma liga mais definida para o público.

Quando estiver exausto tentando juntar os fios soltos no palco, a sugestão para o espectador é levantar os olhos para a árvore iluminada que toma quase todo o céu, entre os edifícios que cercam o pequeno anfiteatro nos fundos do João Caetano.

Ela é a floresta ateniense da comédia shakespeariana, mas é também a imagem de um teatro que tenta se levantar não só da pandemia, mas do pesadelo de Jair Bolsonaro.

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