Descrição de chapéu

'Com Açúcar, com Afeto' ainda pode ser analisada como a bela canção que é

Na disputa à música de Chico Buarque, pouco se fala de como ela segue sua trilha com incomensurável tristeza

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Sidney Molina

É violonista, professor e crítico musical​​. Autor dos livros "Mahler em Schoenberg" e "Música Clássica Brasileira Hoje" e fundador do quarteto de violões Quaternaglia

Um filme pode ter cenas pesadas, difíceis de assistir e ainda ser um grande filme, assim como pode retratar temas edificantes e ser fraco. Ou uma obra plástica figurativa não se explica ao todo sem vermos aspectos como cor e luz.

Em arte, frequentemente o "como" (artesanato, invenção) qualifica (afirma, nega, põe em dúvida) o "quê" (a literalidade do tema representado).

Quando tomamos uma canção popular, acontece o mesmo. O texto poético é entoado melodicamente, enquanto se encaixa numa harmonia (os acordes que, ao violão ou teclado, criam território para o canto). Canção é "palavra-cantada-e-harmonizada", e é assim, no todo, que ela constrói e desconstrói sentidos.

bebê, mulher e menina em foto preto e branca
Nara Leão canta 'Para Ver a Banda Passar' com Chico Buarque em fotografia de 1967 reproduzida na biografia 'Ninguém Pode com Nara Leão', de Tom Cardoso - Reprodução

Na polêmica resultante da legítima decisão de Chico Buarque não mais cantar "Com Açúcar, com Afeto", de 1967, pouco se tem falado da canção em si —sua música, a relação do texto com notas e acordes; o modo como se definem e oscilam os tais afetos. Antes da polêmica, como se dá a afetividade em "Com Açúcar, com Afeto?"

Em linhas gerais a melodia da canção é apertada, ela caminha em passos curtos, murmurantes, quase mínimos. Ela é também cromática, passa por notas "erradas", que não pertencem aos acordes do acompanhamento (a mais forte, no trecho inicial, está no verso "pra você parar em casa"). Isso, junto ao texto, carrega o todo de um tom aflitivo, sufocado, hesitante.

A temperatura tensional sobe após o inesquecível "qual o quê" —a subida do baixo (nota mais grave) conflita com a a repetição obsessiva da melodia ("com seu terno mais bonito, você sai, não acredito").
Chico invariavelmente utiliza a repetição de células melódicas quando quer retratar estruturas fixadas, contra as quais é difícil lutar. Isso se dá em "Construção", "Cotidiano" e muitas outras.

O mais interessante em "Com Açúcar", porém, acontece a partir da variação "sei lá o quê" ("sei que alguém vai sentar junto/ Você vai puxar assunto") —a canção vai para o tom maior e se enche de luz.

O canto da personagem, porém, segue em seu passo apertado, na angústia de imaginar os prazeres do ser amado. A sofisticação de Chico atinge ponto alto em "você vai querer cantar", quando a melodia salta uma oitava (entre o "can" e o "tar"), como se evocasse o canto livre que faz falta.

A música enfim retorna sobre si mesma —junto com o retorno ao lar— ("quando a noite enfim lhe cansa/ você vem feito criança"), recuperando a inexorável monotonia curta e torta do início.

Mas, como no melhor Jobim, a repetição musical não é literal —uma variação começa em "e ao lhe ver assim cansado", atingindo ponto culminante após o derradeiro "qual o quê" ("logo vou esquentar seu prato"), quando a insustentabilidade da dor ameaça libertar num agudo nunca antes atingido, a voz da personagem que, porém, fracassa, descendo vertiginosamente a seu restrito âmbito original.

"Com Açúcar, com Afeto" foi escrita para Nara Leão e gravada em seu disco "Vento de Maio". No mesmo ano surge no LP "Chico Buarque de Hollanda Vol. 2", não interpretada pelo compositor, mas pela cantora Jane Moraes.

A versão famosa na voz do autor está em "Chico Buarque e Maria Bethânia Ao Vivo", de 1975, onde é precedida por uma estonteante interpretação de Bethânia para a canção "Sem Açúcar", que explicita sem peias a violência de uma relação tóxica (vejamos "eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo").

No calor da discussão basta ficar com o que escreveu Tamiris Coutinho neste jornal. "Se reviver sua obra e optar por deixar de cantá-la foi a maneira que encontrou para ajudar na luta das mulheres por respeito, que ótimo!"

Enquanto isso, a canção segue sua trilha, na qual o afeto colocado com açúcar pela personagem é, em termos musicais, o de uma incomensurável tristeza.

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