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Tamiris Coutinho

Não é 'mimimi' de feministas

Compositor mostra autocrítica, empatia e maturidade para mudar e evoluir

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Tamiris Coutinho

Graduada em relações públicas (Uerj) e formada em música e negócios (PUC-RJ), é produtora de conteúdo digital e autora de ‘Cai de Boca no Meu B*c3t@o - O funk como potência do empoderamento feminino” (Claraboia Editora)

Era sábado, 29 de janeiro. Assistindo à série "O Canto Livre de Nara Leão" (muito bem produzida, por sinal), deparei-me com o relato de Chico Buarque sobre a música "Com Açúcar, com Afeto". Segundo ele, não cantaria mais a canção e acredita que, se estivesse viva, Nara também não.

Peguei-me pensando: "Nossa, que fala interessante a do Chico; vai gerar debate, aposto". O que eu não poderia apostar é que seria uma das pessoas convidadas a contribuir com esse debate. Pois bem, aqui estou.

O cantor e compositor Chico Buarque, autor de 'Com Açúcar, com Afeto' - Divulgação

A música composta por ele, a pedido de Nara, tem a narrativa da mulher "sofredora", aquela que não tem independência financeira, que fica em casa o dia inteiro cuidando do marido e dos afazeres domésticos —enquanto ele vai vadiar nos bares, apreciando saias, copos de bebida, futebol e samba. Os versos relatam a dor dessa mulher e causam identificação naquelas que, infelizmente, já passaram ou passam por isso.

No entanto, também causa repulsa entre as mulheres que não admitem esse comportamento, que está fincado na sociedade patriarcal em que vivemos e cujo objetivo é perpetuar a superioridade masculina.

E, por conta disso, Chico é cirúrgico: "[As feministas] têm razão. Eu não vou cantar ‘Com Açúcar, com Afeto’ mais". Essa razão por parte das feministas está no descontentamento delas quanto ao teor machista da relação explicitada na canção.

Como fiz um estudo analisando trechos de músicas funk, devo enfatizar dois pontos antes de continuar este texto: o eu lírico não é necessariamente o compositor e, para toda composição, há contextos e formas diferentes de interpretação. Dessa forma, a música também pode ser analisada como uma possível denúncia ao relacionamento abusivo sofrido pela mulher na canção.

Por isso, devo concordar com colegas que escreveram em seus artigos que artista e obra não deveriam ser cancelados. No entanto, discordo totalmente dos que disseram que Chico estava se "curvando ao ‘mimimi’ das feministas". Primeiro, porque não acho que seja verdade. Segundo, porque essa discussão nubla a questão que, para mim, realmente importa: a equidade de gênero.

Nesse quesito, enfatizo minha admiração pelo artista que tanto fez e faz pela música popular brasileira. Faz tanto e sabe tanto de seu valor que assume a posição contrária à própria composição e se manifesta publicamente contra continuar cantando a música. Por isso, concordo com Chico e acredito ser hipercoerente a sua atitude.

bebê, mulher e menina em foto preto e branca
Chico Buarque e Nara Leão em fotografia de 1967 reproduzida na biografia 'Ninguém Pode com Nara Leão', de Tom Cardoso - Reprodução

Ter humildade, autocrítica, empatia e maturidade para mudar, evoluir, questionar-se, reinventar-se e usar seu dom e arte para tornar o mundo melhor para todas as pessoas é admirável. Se reviver sua obra e optar por deixar de cantá-la foi a maneira que encontrou para ajudar na luta das mulheres por respeito, que ótimo! Vamos apoiá-lo por isso, esperar que possa contribuir cada vez mais e que sua atitude incentive outros artistas a também se mobilizarem.

Agora, depois de refletir sobre essa "polêmica", passo a bola. O que você tem feito para apoiar as mulheres além de dizer que suas inquietações são apenas "mimimi"?

TENDÊNCIAS / DEBATES
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