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Literatura liberta mulheres a serem terríveis, de 'Açúcar Queimado' a 'A Pediatra'

Romances subvertem expectativas de gênero ao entrar nos pensamentos de protagonistas imorais

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ilustração de mulher em meio a flores, em vermelho, azul e roxo

Ilustração de Luísa Zardo para capa e contracapa de 'Açúcar Queimado', romance de Avni Doshi que saiu pela Dublinense Divulgação

São Paulo

É difícil não se espantar já na primeira frase do romance "Açúcar Queimado". "Eu estaria mentindo se dissesse que o sofrimento de minha mãe nunca me deu prazer", reconhece a protagonista, Antara, criada pela escritora americana de ascendência indiana Avni Doshi.

Mais adiante, a narrativa esmiúça as razões que tornaram essa relação de mãe e filha uma catástrofe, mas desde a linha de abertura está nítido que Antara integra uma leva de personagens femininas que se desviam sem remorso da moralidade padrão.

Se os homens difíceis já vicejam na ficção há tempos, talvez seja hora de olhar as particularidades deste protagonismo que se oferece às mulheres imorais.

"Muitos assuntos que eram tabu, em especial quanto à maternidade, se abriram, e a conversa se ampliou", afirma Doshi, que foi indicada ao prêmio Booker por esse livro de estreia. "Mas ainda se liga muito a autora às personagens. Se a protagonista pensa alguma coisa, as pessoas acreditam que a autora pense o mesmo."

"Quando uma mulher escreve em primeira pessoa, ainda há uma certa expectativa de que aquela seja a história de sua vida. Não sei se há esse entendimento com autores homens."

avni doshi com o queixo apoiado na mão, sobre o joelho
A escritora americana de ascendência indiana Avni Doshi, de 'Açúcar Queimado', lançado pela Dublinense - Divulgação

Outro romance recente contado pela voz de uma narradora misantrópica é "A Pediatra", que traz as confissões de Cecília, médica neonatal que afirma de bate-pronto que odeia crianças. Analisa bebês e pais, colegas e parceiros sexuais, com uma lente cínica e mordaz que desvirtua as expectativas de uma profissão tão ligada ao cuidado.

"Eu estava saturada de um processo de escrita anterior em que meu narrador era um homem bom. Ele não me dava linguagem, era anêmica", se exaspera a autora, a paulista Andréa del Fuego. "Essa mulher disfuncional foi se construindo frase a frase. Escrevi como se ela não soubesse que estava sendo escrita, como se eu a flagrasse a todo momento. Isso deu a liberdade para que ela fosse canalha."

Já nas primeiras páginas surpreendemos Cecília atendendo uma grávida uma hora depois de transar com o marido da moça no banheiro do consultório. "Foi bom que ele tenha conseguido fazer seu papel de esposo como se eu não estivesse do outro lado da mesa recheada com o sêmen que a fecundou", escreve a pediatra.

Depois, no parto da mulher, ela se vê obrigada a costurar a "vagina que recebia o mesmo pau que eu, agora rasgada pelo primogênito". "Por pouco não a fechei."

A escritora comenta que sua personagem, na verdade, "não quebra nenhum pacto social, mas seu pensamento não tem filtro". "Espera-se de algum jeito que a pediatra tenha qualquer maternidade. Não, o que ela tem é o protocolo científico."

O repórter pergunta se o fato de sua protagonista antissocial ser mulher, em vez de um doutor House já palatável na cultura pop, aumentou o receio de que a obra pudesse ser mal julgada ou compreendida. Del Fuego diz que sim.

"Se fosse o doutor Oswaldo Maranhão, por exemplo, não sei se a percepção seria de um canalha. Talvez ele fosse visto como competente e emocionalmente instável, por que não? Um homem charmoso com suas falhas, suas quedas por mulheres casadas."

Se Cecília rompe com um dos papéis tradicionais exigidos da mulher —a cuidadora afetuosa de crianças—, "Açúcar Queimado" demole a expectativa na outra ponta, a do amor infindável pela mãe idosa.

Tara, a figura materna —que começa o livro já num processo avançado de Alzheimer— se revela tão maliciosa quanto uma Livia Soprano indiana, mas ganha camadas de complexidade conforme o livro retoma a história de sua relação com a filha desde a origem.

Vemos, por exemplo, que a mãe se rebelara contra papéis engessados de gênero, se desgarrando de um casamento infeliz e procurando às cegas seu papel num mundo que não sabe o que fazer com mulheres livres de maridos.

A história de Antara, a filha, é repleta de negligência e abandono. Mas no desenrolar do romance se revelam seus próprios furos e inconsistências, suas mentiras e crueldades. O livro trabalha, assim, com a seletividade da memória e a maneira como é impossível confiar na subjetividade.

Doshi afirma que, ainda que poucos personagens masculinos apareçam em "Açúcar Queimado", ele ainda é estruturado em torno de normas patriarcais.

"Há uma tensão na maneira como o prazer de Antara e o de sua mãe estão em desacordo, ocupando lados diferentes na jornada da vida", aponta. "Antara está tentando convencer o leitor o tempo todo de que sua mãe merece tudo o que está recebendo, de que a vítima é ela."

Não demora para notarmos que essas mulheres que à primeira vista soam terríveis, ao fim e ao cabo, são só complexas. E seguem o fio de outras autoras já aclamadas pela sofisticação de protagonistas inusuais.

Nas entrevistas, Doshi lembrou o impacto que sentiu ao ler a canadense Rachel Cusk, e Del Fuego celebrou a "Canção de Ninar" da francesa Leïla Slimani. Poderíamos mencionar as mulheres misantrópicas de Ottessa Moshfegh ou a recém-resgatada mãe da "Filha Perdida" de Elena Ferrante. Evidências de que ampliar as possibilidades de personagens femininas alarga as fronteiras da própria literatura.

"A Cecília foi uma experiência literária muito libertadora", afirma Del Fuego para concluir a conversa. "Quando senti que a publicação desse livro era um risco imenso, isso confirmou mais ainda que eu estava fazendo literatura. Não existe literatura sem risco."

Açúcar Queimado

  • Preço R$ 69,90 (272 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Avni Doshi
  • Editora Dublinense
  • Tradução Adriana Lisboa

A Pediatra

  • Preço R$ 54,90 (160 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Andréa del Fuego
  • Editora Companhia das Letras
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