Descrição de chapéu pantanal

'Pantanal' promete ao Brasil de Bolsonaro um banho de calma diante da destruição

Novela original resgatou nos anos 1990 a identidade rural do país em época de turbulência econômica do Plano Collor

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A atriz Alanis Guillen como Juma, em cena do remake de 'Pantanal' João Miguel Júnior/TV Globo

São Paulo

Fazia poucos dias que Fernando Collor havia confiscado o dinheiro da caderneta de poupança dos brasileiros quando "Pantanal" estreou na tela da TV Manchete, em 27 de março de 1990. Diante do pesadelo imposto pelo plano econômico ao universo mais urbano e ligado ao consumo, o telespectador se voltou para ver uma novela que resgatava a identidade rural do país, a simplicidade e a possibilidade de ser feliz em contato com a natureza.

Se o Brasil turbulento daquele ano de 1990 precisava da calmaria de cenas de rios, tuiuiús, mata e pôr do sol, com música instrumental, sons da natureza ou mesmo com o silêncio, o que dizer do país de 2022, que encara Bolsonaro, pandemia e guerra na Europa?

Os atores Irandhir Santos e Renato Góes em cena do remake de ‘Pantanal’
Os atores Irandhir Santos e Renato Góes em cena do remake de ‘Pantanal’ - João Miguel Jr./TV Globo

No próximo dia 28 entra no ar, desta vez na Globo, o remake de "Pantanal", 32 anos depois de a primeira versão ter proporcionado placidez enquanto causava um tsunami na guerra do Ibope. Com a novela, a Manchete conseguiu permanecer seguidas vezes com mais audiência do que a Globo, que havia recusado o projeto de Benedito Ruy Barbosa.

Num momento em que os anunciantes haviam se retraído em razão do Plano Collor, o sucesso da trama pantaneira gerou disputa por espaço nos seus intervalos, segundo registra "Pantanal – A Reinvenção da Telenovela", de Arlindo Machado e Beatriz Becker —o livro foi publicado em 2008, quando o SBT exibiu a reprise da novela, que dobrou a audiência da emissora no horário.

Os autores analisaram como a novela havia rompido com a linguagem que vigorava na teledramaturgia, de ritmo acelerado, cenas curtas e cortes rápidos, planos fechados e closes nos atores. A Globo já era uma fábrica de novelas e não via por que alterar sua fórmula bem-sucedida de produção. Já a Manchete era uma jovem emissora, fundada sete anos antes, que queria se vender como uma alternativa de qualidade e de ousadia.

Adolpho Bloch, seu dono, morto em 1995, "era uma pessoa ousada e de muito bom gosto", lembra Jayme Monjardim, que foi o diretor-geral de "Pantanal". "Era um homem que andava com Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer. Olha que trio", diz à repórter. "Ele comprou a ideia. Disse ‘vai lá, meu filho, pode fazer’."

O diretor tinha uma formação cinematográfica e transpôs à televisão uma linguagem até então mais própria do cinema, de planos mais abertos, pausas nos diálogos e tempo para contemplação. Monjardim afirma que essa ruptura não foi premeditada, e sim algo que foi acontecendo no decorrer da exibição da novela.

"Isso foi definido pelo próprio Pantanal. Quando você está lá e filma aquele pôr do sol, na hora de editar as imagens, pensa ‘por que vou cortar se isso é tão lindo?’. O tempo da novela é o tempo do Pantanal." Os primeiros capítulos, que já traziam o ritmo mais lento e as cenas contemplativas, fizeram sucesso. Monjardim então seguiu nessa trilha até o final, e a novela marcou um novo caminho para a teledramaturgia no país.

Três décadas depois, a vida está mais corrida e tumultuada. E, de novo, o Pantanal vem para desacelerar, comenta Rogério Gomes, o Papinha, diretor da primeira fase da nova versão. "A ideia foi dar prosseguimento ao que o Jayme fez. É também uma homenagem ao que representou a novela", diz ele, que na semana passada deixou a Globo, onde atuou por 42 anos, e passou o comando para Gustavo Fernandez.

Papinha passou quatro meses com uma equipe de 120 pessoas no Pantanal, onde gravou os 60 primeiros capítulos dos cerca de 170 que a novela deverá ter. Ele também acha que a obra tem de respeitar "a energia forte do lugar".

"Não adianta querer dominar o Pantanal, você tem que respeitar. O tempo da edição vem disso", diz. "Para chegar ao local das gravações, a gente precisa de avião, de barco e depois demora seis, sete horas de carro, abre e fecha porteira umas 40 vezes. Esse é o ritmo."

O diretor concorda que, assim como, em 1990, "Pantanal" acolheu um Brasil traumatizado pelo Plano Collor, hoje pode "cumprir um papel social" ao levar "paz e tranquilidade" ao público, que vive o ritmo alucinante da tecnologia e assiste a noticiários dramáticos. "O ser humano está nervoso, ansioso, tudo é motivo para briga. A ideia foi manter as pausas, os sons da natureza e até o silêncio da versão original", diz o diretor, que reviu a novela de 1990 antes de começar a produzir o remake.

A diferença, a favor do remake, são as ferramentas tecnológicas de hoje, inimagináveis em 1990. "Para as imagens aéreas, a gente tinha que pendurar um profissional na porta do avião", lembra Monjardim. E, como o barulho do motor atrapalhava, a equipe chegou a utilizar balões para as gravações. "Agora, temos os drones para as aéreas, e foi sensacional trabalhar com eles no Pantanal", diz Papinha.

O som agora, diz o diretor, é Atmos. Superior ao surround, ele se aproxima ainda mais do cinema, dando a sensação de vir de vários pontos da sala. E a qualidade das imagens, obviamente, nem se compara à de 1990, quando os televisores eram pequenos e analógicos. O primeiro capítulo será feito em 8K, de "ultra-alta-definição".

A tecnologia atual, aliás, vai facilitar os efeitos especiais. Mas Papinha diz que não se deve abusar ao comentar cenas como quando a personagem Juma vira onça-pintada, um dos pontos altos da trama com toques de realismo fantástico. "Não se pode fugir daquela linguagem que só insinuava a transformação porque é uma lenda", observa o diretor.

Ele também diz não ter feito nada no estilo de "As Aventuras de Pi", que ganhou o Oscar de efeitos especiais. O filme mostra um garoto e um tigre compartilhando o mesmo barquinho depois um naufrágio —o bicho, ultrarrealista, não passava de um truque de animação. "A ideia é trabalhar com animais de verdade."

Ele afirma que, diante da concorrência com os conteúdos e formatos do streaming, a Globo esteja caminhando para uma fase de experimentação e de investimento em novelas de sagas de famílias.

Monjardim também conta que esse é o caminho para manter a força da telenovela, mesmo diante da avalanche de novas opções audiovisuais. "Com a concorrência do streaming, a TV aberta precisará investir em grandes projetos, como ‘Pantanal’, obras que tenham a força de trazer de volta a família para a frente do mesmo televisor."

"Não pode ser qualquer produto, ou o público vai para a TV fechada, para o streaming", diz Monjardim. "E a TV aberta tem esse papel de criar um momento para a família, de abordar temas relevantes e fazer algo bom pelas pessoas."

Ele defende que as novelas, apesar de hoje terem de ser pensadas para diferentes telas e para o consumo sob demanda, devem garantir a audiência tradicional da televisão, medida quando o telespectador assiste ao programa no horário em que vai ao ar.

Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Beatriz Becker diz que, em 1990, "Pantanal", com o tema da ecologia, reforçou a ideia de que "há produtos da mídia que podem contribuir para ampliar a percepção da realidade e transformar" a realidade.

"A novela não pretendia denunciar crimes ecológicos e fomentar o ativismo a favor do desenvolvimento sustentável", diz a pesquisadora. "Mas despertou os telespectadores para a importância do equilíbrio ecológico e da biodiversidade, antecipando o debate sobre a sustentabilidade no país, promovendo ações políticas e movimentos sociais."

Mais de 30 anos depois, com "o mundo em guerra, o aumento do sofrimento humano e o difícil contexto político e econômico do Brasil", o remake de "Pantanal", diz Becker, "pode contribuir para o debate sobre a necessidade de novos modelos de desenvolvimento, ancorados na equidade social, na ética e na responsabilidade planetária".

Segundo a pesquisadora, o remake também "é uma estratégia para promover vínculos com diferentes atores sociais que repudiam o desmatamento, o garimpo ilegal, o desrespeito às comunidades vulneráveis e retrocessos de proteção socioambiental em curso no Brasil no atual governo".

Se, em 1990, houve a ousadia de levar à TV um ritmo próprio do cinema, hoje, pondera Becker, o remake se dá quando os formatos se misturam nas multiplataformas, com "a maior fluidez e semelhança nas formas de se consumir filmes, séries, novelas e jornalismo". A digitalização trouxe uma "hibridização de linguagens", o que "tem gerado novas formas de narrar histórias da ficção e do mundo real, com narrativas que não se prendem a gêneros específicos".

Em 1990, Becker era jornalista da TV Manchete e acompanhou a equipe de Monjardim nas gravações para fazer reportagens sobre a novela. A experiência foi explorada por ela em seu mestrado e no
livro sobre "Pantanal", em coautoria com Arlindo Machado. "Aquele tempo pantaneiro, da mesma forma que influenciou a linguagem da telenovela, ditou a maneira como eu produzia para o jornalismo. É um tempo outro, que não o cronológico."

Não há como prever, ela diz, apesar do contexto social propício para essa temática, se o remake vai "se constituir novamente como fenômeno de mídia". Não há dúvida, porém, de que é uma aposta para reconquistar o telespectador que tem fugido da tensão e da gritaria nas novelas das nove.

Diante de tanta tragédia nos telejornais e em meio ao clima de guerra previsto para este ano eleitoral, nada como o tempo pantaneiro. "As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem", já lembrava Manoel de Barros, em um poema citado no livro "Pantanal".

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto afirmava que o autor do livro "Pantanal" era o poeta Manoel de Barros. O livro é de Arlindo Machado e Beatriz ​Becker.

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