Descrição de chapéu Televisão pantanal

Rejeitar 'Pantanal' há 30 anos foi um erro, diz Boni, chefão da Globo na época

Emissora repara dívida histórica com Benedito Ruy Barbosa produzindo remake da saga assinada pelo neto do autor

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São Paulo

A saga familiar que marca a trajetória dos Leôncios no enredo de "Pantanal" se repete, de certa forma, nos bastidores da trajetória da novela, que ganha nova versão a partir do dia 28, no horário mais nobre da TV —o das 21h30, na Globo.

Agora adaptada e atualizada por Bruno Luperi, neto do autor da obra original, Benedito Ruy Barbosa, a produção vem da empresa que se recusou a produzir essa mesma história há 32 anos.

Como em uma novela, a Globo se rende enfim ao herói que desprezou em 1990, quando a então promissora TV Manchete abocanhou a chance de ser vanguardista. Fez do folhetim um divisor de águas no gênero, tanto pela questão audiovisual quanto pelo debate ecológico, que ainda não era modinha naqueles dias.

mulher em pé em tronco de árvore
A atriz Alanis Guillen como Juma Marruá em cena do remake da novela 'Pantanal', da Globo - João Miguel Jr./ TV Globo

"Foi um erro", admite o hoje empresário José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, chefão da Globo à época. Mas Boni atribui o equívoco a Herval Rossano, diretor que na ocasião foi até o Pantanal para verificar as condições locais de gravação. "Ele disse que nem ia ler", conta Ruy Barbosa.

"Não foi bem isso", pondera Boni, que faz questão de dizer que é amigo de longa data do autor. "Chamei o Daniel Filho, que era responsável pelas novelas, e ele mandou o Herval ao Pantanal. Herval disse que era época de cheias. Fizemos outras tentativas depois, mas ele mantinha a informação de que a produção teria um custo inestimável. Ele apresentou um orçamento inviável, e as gravações demandariam uma semana de produção para cada capítulo em uma época em que a gente conseguia gravar três capítulos no mesmo tempo", lembra Boni.

Ruy Barbosa, o criador de Juma Marruá, conta que o chefão disse a ele "Ruy, eu confio em você". "Abriu um horário para você, pode fazer o que quiser." "Eu disse ‘Pantanal’. E ele, ‘Pantanal’ não. Eu pedi então que ele me liberasse para eu fazer a novela na Manchete. ‘Ah, na Manchete? Pode ir’."

Deu no que deu. "Duvidei que ele fosse embora", admite Boni.

O fato é que, se tivesse vingado na Globo em 1990, "Pantanal", exibida pouco depois das 21h30, após o horário nobre da emissora global, não seria produto daquela mesma faixa. Ruy Barbosa, na rede dos Marinho, só escrevia novelas das seis.

Certamente haveria também mais cenas feitas no Rio de Janeiro do que ao alcance dos tuiuiús, em Mato Grosso do Sul, onde o folhetim foi gravado em 1990 e também é filmado agora.

"Eles diziam que atriz da Globo não mija no mato. Mas para gravar no Pantanal, tem que mijar no mato, se for o caso", diz Ruy. "Na Manchete, o elenco deu um show, e não tivemos uma picada de cobra, nada, em nove meses de gravação."

A Globo pode ter demorado três décadas para abrir espaço a Juma Marruá, a mulher que vira onça, mas trouxe Ruy Barbosa de volta logo após "Pantanal". Em 1993, veio "Renascer", primeira novela rural do horário mais nobre da TV, então de 20h30. A maior parte das cenas externas foi gravada in loco, na Bahia, como nunca havia acontecido até então na emissora líder.

Tudo isso é efeito de "Pantanal". Hoje, Boni afirma que Herval Rossano teve uma avaliação equivocada, mas arrisca dizer que a Manchete pode ter iniciado ali a sua derrocada —a emissora sucumbiu à falência nove anos mais tarde, por uma série de erros administrativos. "A novela não se pagava", conclui ele.

"De toda forma, é preciso dizer que o Homero Icaza Sánchez leu a sinopse de ‘Pantanal’ e nos avisou ‘não pode deixar de fazer essa novela’", lembra Boni, sobre o diagnóstico do ex-cônsul panamenho. Por anos, Sánchez se dedicou a pesquisas que buscavam traçar o destino da dramaturgia da Globo num mundo ainda sem a ditadura dos algoritmos. Conhecido como "o Bruxo" por causa dos acertos que alcançava, ele alertou Boni da eficácia daquele enredo —agora regravado com novo elenco, novas diretrizes no contexto agroecológico e sem algumas vilanias impensáveis no âmbito das queimadas que hoje vitimam o bioma.

Habituado a escrever sozinho, sem a ajuda de outros roteiristas, ao contrário da maioria de seus pares, Ruy Barbosa também é conhecido por não permitir que os atores mudem seu texto na hora de gravar. Mas diz estar "muito tranquilo" com a assinatura do neto na nova versão. Essa, aliás, foi uma das condições para ele aprovar o remake.

Recluso em seu sítio em Sorocaba, no interior de São Paulo, o autor conversou com esta repórter por meio de videoconferência realizada diretamente da casa de Bruno Luperi, na capital. Este falou presencialmente sobre a responsabilidade de honrar o histórico do título.

"É uma adaptação. Estamos trazendo a história para os dias de hoje, eliminando o que ficou datado, como as menções ao Plano Collor e ao congelamento da inflação", conta Luperi que, como o avô, trabalha sozinho na redação do texto.

Diálogos sobre a exploração do couro de jacaré, assunto que a indústria da moda enterrou, também foram cortados. Jove, o filho de Leôncio que, criado no Rio, era visto como alguém pouco viril na primeira versão, agora entra mais em conflito com o pai em razão das maneiras de explorar a terra. O embate, que antes ficava a cargo de Marcos Winter e Cláudio Marzo, na nova versão será entre Jesuíta Barbosa e Marcos Palmeira.

"Antigamente, esse conflito era muito mais questão de ser ou não ser o filho varão que vai assumir o lugar do Zé Leôncio. Hoje ele vem com uma questão ideológica muito forte. Onde tinha um espaço ligado ao ‘filho que eu espero’, agora é ‘você também não é o pai que eu espero’. Há esse choque geracional em função dos temas atuais, como desmatamento, queimadas e a expansão do agronegócio, que troca rios por plantações de soja para exportação", diz Luperi.

"Em termos de dramaturgia, o meu avô separava muito claramente –o Zé Leôncio era o homem bom porque ganhou a terra e o direito de produzir sobre ela, e produz. E o Tenório é o homem ruim porque ele tem o direito à terra e não produz sobre ela. Mas tem uma terceira camada que chega agora —como se produz?"

Tenório, aliás, interpretado desta vez por Murilo Benício, perde o estereótipo vilanesco que Antônio Petrin deu ao personagem em 1990. "Esse cara mudou muito em 30 anos. Ele é alguém hoje muito próximo da gente, do nosso convívio, que de repente está abrindo uma portinha e começando a falar coisas que você jamais imaginou, com naturalidade. São coisas que antes o Tenório faria com pose de vilão, mas hoje ele manda esse recado por mensagens no WhatsApp", afirma Luperi.

"Ninguém esperava ver o Murilo Benício na pele do vilão, e esse perfil hoje está muito próximo do mocinho. O protagonista e o vilão sentam na mesma mesa para falar de negócios. Os personagens da obra do meu avô não são maniqueístas."

A grilagem de terras, assunto desde sempre presente nos enredos de Ruy Barbosa, prova mais uma vez o potencial de ser tema atual e universal. "A briga pela cerca está em todos os lugares o tempo todo", argumenta Luperi. "Há uma série de assuntos que precisam ser revisitados, mas existe uma espinha central atemporal."

Nascido e criado em cenário urbano, ele sabe que é menos "matuto" que o avô. Mas conta ter uma ligação forte com o universo rural, até em função das histórias e lendas sempre contadas por Ruy Barbosa, que fará 91 anos em abril.

Com 33 anos, Luperi nasceu logo após "Pantanal" original. Passou a vida ouvindo o avô prometer que queria levar todos os netos para visitar o cenário que ele acabou conhecendo só agora, há menos de dois anos, por causa da missão de reescrever a novela.

Não é de hoje que a Globo pensa em reparar a dívida com Ruy Barbosa para abraçar uma nova versão da saga rejeitada em 1990.

Em 2008, quando a emissora já vinha pagando, em parcelas, pelos direitos autorais da obra, o SBT surpreendeu o mercado televisivo ao comprar a produção da massa falida da Manchete e levar a novela ao ar. A Globo então interrompeu o negócio com o autor, retomando a aquisição apenas em 2019, por ocasião da renovação de contrato do dramaturgo.

Quase toda a novela da Manchete ainda estava disponível no YouTube até este domingo, com logotipo do SBT, o que a Globo pode tentar suspender a qualquer momento. A publicação refresca a memória de quem viu a original e reforça os efeitos de comparação com a produção atual, filmada com muito mais recursos, a começar pelas locações, antes restritas a uma fazenda e agora estendidas a seis propriedades.

O QG delas tem como dono o músico Almir Sater, a quem Luperi trata como "um guardião do Pantanal". Nascido em Campo Grande e projetado para a fama ao viver o personagem Trindade, dupla de Sérgio Reis na versão de 1990, o cantor e compositor vive agora o chalaneiro que só aparecia no último terço da história original.

Quando a Record refez "Escrava Isaura" em 2005, totalmente calcada na versão da Globo de 1976, houve muitas críticas à falta de inventividade do remake sobre a obra de Bernardo Guimarães. Mas o diretor de ambas era o mesmo —Herval Rossano, a quem Boni atribui o erro de recusar "Pantanal" em 1990. Agora, Rogério Gomes, o Papinha, assume o posto que projetou o nome de Jayme Monjardim há três décadas.

Desta vez, a Globo se baseia tão fielmente na novela da Manchete que até a música da abertura, de Marcus Viana, vem sendo usada nas chamadas que anunciam o remake.

Luperi sabe que as comparações fazem parte do show. "O desafio é esse. Meu ponto de partida é que poucas pessoas serão mais fãs da obra do meu avô do que eu. E 'Pantanal' mexe muito com a memória afetiva das pessoas."

A vantagem de refazer uma obra é algo de que ele sentiu falta em "Velho Chico", de 2016, novela que escreveu, em parte ao lado da mãe, Edmara Barbosa, a partir de uma sinopse ainda inédita do avô. Quando a trama chegou ao fim, conta Luperi, ele sentiu que gostaria de revisitar o enredo desde o primeiro capítulo e reescrever, já com as dimensões sobre os pontos e personagens mais bem aceitos pela plateia.

É essa oportunidade que ele terá agora, com "Pantanal". "Ela tem um lugar cativo no imaginário das pessoas. Olhando para o texto dele [Ruy Barbosa] , eu falo, brincando, que o tecido social hoje é muito mais sensível."

Sobre o avanço da nudez que a novela proporcionou na época, com os infindáveis banhos de rio de suas atrizes, há a percepção de que aquela era uma produção realizada pouco depois do fim da censura. "Eles vinham de uma pós-ditadura, de uma experiência de liberdade muito grande, de testar limites. Hoje, pelo contrário, a gente se policia com 90% do que fala para se dirigir à massa. Vivemos um tempo bem mais delicado."

Guardadas as proporções que distanciam as duas produções e o ritmo de contemplação ditado pela obra de Barbosa, vale ainda o diagnóstico do "Bruxo" Icaza Sánchez, que atribui às lendas do enredo o potencial de encantar o público a qualquer tempo.

"É a obra mais genuína do meu avô, é onde eu mais o vejo integralmente", diz Luperi. Ruy confirma –"depois que eu fiz ‘Pantanal’, não queria mais escrever novelas". "Eu sofro muito, penso naqueles personagens dia e noite. Modéstia à parte, ‘Pantanal’ é uma aula de televisão, tudo o que eu aprendi em TV desde que nasci está ali."

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