Descrição de chapéu Artes Cênicas

Ópera separa plateia com muro para trazer Romeu e Julieta ao Brasil das milícias

Antônio Araújo, de volta aos palcos após depressão, põe duas mulheres nos papéis principais de 'Os Capuletos e os Montéquios'

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Ensaio da ópera 'Os Capuletos e os Montéquios' no Theatro São Pedro, em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

A última estreia de Antônio Araújo foi há sete anos. Era "Patronato 999 Metros", em Santiago, no Chile, uma versão de "Bom Retiro 958 Metros", que havia sido montada em São Paulo três anos antes.

Agora, o diretor estreia no Theatro São Pedro a ópera "Os Capuletos e os Montéquios", de Bellini, com libreto de Felice Romani. Foram só três semanas de ensaio, mas "é uma delícia voltar à sala de ensaio e fazer um trabalho que virá a público", diz ele.

É o que muitos em teatro estão vivendo, com o recuo da pandemia. Mas o caso de Araújo é diferente. Já se sabia que o diretor de "O Livro de Jó", de 1995, e "BR3", de 2006, demorava no preparo de seus trabalhos, mas a última década trouxe percalços maiores.

Diretor de teatro Antônio Araújo, fundador do Teatro da Vertigem, em retrato de 2019 - Karime Xavier/Folhapress

Depois de "Patronato", sua mãe caiu doente. "Fiquei cuidando dela. Ela foi piorando. Teve um AVC grave, aí era cuidado 24 horas por dia. Teve um monte de coisa, desde erro médico, que fez ela ir para a UTI, aí vai dando outras coisas, infecção, trombose."

Morreu em 2019, quando ele já havia caído também. "Eu nunca tinha tido depressão e só me dei conta depois. Você acha que está triste porque sua mãe está doente, mas aí vai percebendo que é outra coisa."

Araújo descreve a depressão como uma percepção de que já tinha feito o que tinha que fazer. "Que podia ir embora. E você acredita fortemente nisso. 'Deu, já formei aluno, já fiz trabalhos, posso ir.' É uma sensação de morte muito forte."

O convite para encenar "Os Capuletos e os Montéquios" veio pouco antes da pandemia. Ele chegou a se reunir com os solistas, em fevereiro do ano retrasado, e depois imaginou que a peça não aconteceria mais, até ser procurado na virada deste ano.

"Achei engraçado essa ópera ter caído agora, porque ela fala da morte", diz Araújo, de 55 anos. O libretista não partiu do "Romeu e Julieta" inglês, mas das novelas italianas, com resultado mais sombrio, sem a mescla de tragédia e comédia de Shakespeare.

"A sensação que tenho é que a ópera é uma descida à morte. Tanto que a cena final é no cemitério. De alguma maneira, é também uma forma de lidar artisticamente com isso que eu vivi."

Mas esse é só um dos três eixos da encenação. Outro, mais escancarado, são as milícias. "São os Capuletos e os Montéquios, são os milicianos em luta entre eles e os milicianos em luta com os traficantes."

A referência foi "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso. "É a questão de um Brasil atual e de não aguentar. Esse Brasil não dá mais. Não é possível mais." Questionado se pensa em sair do país, como fizeram artistas amigos seus, responde: "Num primeiro momento, achei que era importante ficar, fazer algum tipo de resistência. Agora não sei se tenho forças para aguentar mais quatro anos deste governo. Estou no limite. Não aguento mais. Esse cara tem que sair. Ele demoliu arte, meio ambiente, educação. Eu sou professor também. Acabou."

Araújo diz que o governo o adoece, faz com que tenha de "lutar para não entrar no buraco de novo". O retrato disso está na plateia do São Pedro, que o diretor separou ao meio, por um muro. "É este país dividido. Imaginar que 30% apoiam este senhor que está aí é inacreditável. E são brasileiros."

A intervenção impede o público de passar de um lado para o outro —e faz com que muitos vejam parte da apresentação por trás de arame e concreto. "Uma sensação incômoda que traz um pouco disso que a gente está vivendo."

Também o palco tem muro e parede, até mais incômodos, com lâminas como em algumas cercas de prédios paulistanos.

O terceiro eixo é uma crítica à própria "Os Capuletos e os Montéquios", que Araújo descreve como "ópera extremamente machista", em que o libretista deixou uma única mulher, Julieta, "cercada por homens que a tratam como objeto de troca".

Em contraste com o original, a encenação acrescenta ao coro, só de homens, um outro, de mulheres. "São dez atrizes, participações mudas, elas não cantam. Mas estão lá."

Outro passo, maior, é dado com a transformação de Romeu em mulher. O papel foi composto originalmente para uma mezzo-soprano, como se fazia então com personagens masculinos jovens.

"Mas era para fazer como homem. Uma voz de mulher um pouco mais grave, mas ainda aguda, porque é um jovem rapaz. Aqui eu não quis. São duas mulheres em cena. E essas duas mulheres são cercadas por esses homens."

Araújo agradece seguidamente às solistas de Romeu e Julieta, Denise de Freitas, "um dos grandes nomes da ópera deste país", e Carla Cottini, "que adora o trabalho de atriz", pela abertura que mostram para sua direção. Também ao maestro Alessandro Sangiorgi, "totalmente aberto", e até ao teatro.

"As óperas, especialmente bel canto, são meio vacas sagradas. São as óperas que as pessoas amam. É bacana o São Pedro ter aceito e apoiado uma versão com o amor de duas mulheres, as milícias, a própria intervenção na plateia, que é violenta."

Os Capuletos e os Montéquios

  • Quando Qua. e sex., às 20h; dom. às 17h. Estreia neste sábado (15). Até 1º/5.
  • Onde Theatro São Pedro, r. Barra Funda, 161, Barra Funda, São Paulo (SP)
  • Preço R$ 15 a R$ 80
  • Classificação 16 anos
  • Autor Vincenzo Bellini (composição) e Felice Romani (libreto)
  • Elenco Denise de Freitas, Carla Cottini, Aníbal Mancini
  • Direção Antônio Araújo
  • Link: https://theatrosaopedro.byinti.com/#/ticket/
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