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'30 Segundos' vê era de ouro da propaganda brasileira, da ditadura até os algoritmos

Com destaques dos últimos 50 anos, série traz história em que criatividade e representatividade nem sempre andaram juntas

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São Paulo

​Você sabia que o leão, símbolo sólido do nosso Imposto de Renda, nasceu da ideia de um profissional de publicidade tido como socialista, que quis demonstrar como o governo é feroz ao devorar o cidadão a partir da cobrança de tantos tributos?

Esse é um dos bastidores revelados pela série "30 Segundos", que estreia nesta terça-feira, pela HBO, sobre a trajetória da propaganda brasileira ao longo das últimas cinco décadas, sob a perspectiva de espelhar a história do país.

filme publicitário 'Hitler', da Folha, em 1988
Reprodução sobre arte do filme publicitário 'Hitler', criado pela W/Brasil para a Folha de S.Paulo, em frame do documentário '30 Segundos', sobre a história da publicidade no Brasil - Reprodução

Em cinco episódios, a produção passeia pelos efeitos da censura e da repressão militar, da cultura machista, de planos econômicos e políticas de inclusão, entre outros passos. É um prato farto para acariciar a memória afetiva de quem testemunhou criações que tinham a simplicidade e as grandes ideias como premissa.

A produção exibe um retrato capaz de surpreender um público e uma indústria hoje refém de algoritmos, especialmente no universo da comunicação, leque que abraça o jornalismo, o entretenimento e a propaganda.

Com direção-geral de João Daniel Tikhomiroff, produção da Mixer e consultoria de Washington Olivetto e Eco Moliterno, "30 Segundos" narra a concepção de campanhas que ditavam bordões e inibiam o telespectador a mudar de canal ou a abandonar o sofá na hora do intervalo.

"Acho importante que essa série seja feita agora, quando a comunicação em geral no Brasil está sendo tão desrespeitada", diz Olivetto à reportagem, em entrevista por videochamada. Um dos mais premiados publicitários do país, ele espera que o documentário possa colaborar com a valorização da mídia profissional.

"A publicidade brasileira, tida como uma das três melhores do mundo, junto com a americana e a inglesa, só chegou a esse patamar por causa da qualidade da mídia brasileira. Nós, publicitários, sempre fomos uns invasores, uns intrometidos, e o mínimo que o intrometido tem que ser é bem educado, inteligente, charmoso, e foi isso que a gente aprendeu a ser para se intrometer na mídia brasileira de altíssima qualidade."

"A qualidade da propaganda, a gente deve à TV brasileira, aos jornais brasileiros e às revistas brasileiras", continua Olivetto. Na sua avaliação, a publicidade não só brasileira, mas mundial, piorou muito e exibe atualmente um cenário que "está um horror, muito fraco, eu diria que até constrangedor".

Segundo o jornalista Pyr Marcondes, especializado no ramo e presente na série, a compra de agências de publicidade brasileiras por grandes grupos internacionais foi um dos fatores que passaram a inibir a ousadia e a criatividade.

Tikhomiroff disse a esta repórter que procurou dar voz a diferentes pontos de vista, mas, pessoalmente, concorda com Marcondes. "Teve uma época em que a gente aprovava campanhas diretamente com o dono da empresa e a ousadia era muito maior. Quando você passa por regras de marketing e o que o 'book' dita, se submetendo a regrinhas, a criatividade começa a engessar", diz o diretor.

"Acredito que isso ocorreu na última década, engessando muito os resultados mais instigantes e emocionantes."

Tikhomiroff lembra que os comerciais do passado tinham papel de entretenimento para reter a audiência na TV e, à medida que foram evoluindo, quebraram até padrões de programação.

Na série, Olivetto lembra que convenceu José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-chefão da Globo, a estender em mais 30 segundos o limite de um minuto para um filme publicitário. A façanha coube ao lendário comercial do primeiro sutiã, da Valisère, com Patrícia Lucchesi.

Também ouvido pelo documentário, Boni endossa. A série "30 Segundos" mergulha nos detalhes de criação de vários filmes, incluindo "Hitler", feito para este jornal em 1988. Premiada com o Leão de Ouro em Cannes, na França, a peça foi a única brasileira numa lista de 40 finalistas ao melhor comercial do século passado em uma seleção da revista britânica Shots, especializada em publicidade.

O filme parte de um ponto de uma foto granulada em preto e branco, enquanto a figura de Hitler se constrói aos poucos, na tela. Em off, antes que a imagem denuncie a identidade do ditador, um locutor informa que aquele personagem reduziu o desemprego, fez o Produto Interno Bruto crescer, amava a música e a pintura.

Quando o rosto surge por inteiro, a narração finaliza –"é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade". "Por isso, é preciso tomar muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe. Folha de S.Paulo –o jornal que mais se compra e nunca se vende."

"É um grande filme por ter um discurso que vale em qualquer momento", diz Olivetto no documentário. "Se hoje a Folha quisesse botar o ‘Hitler’ no ar, dizendo ‘é possível falar muitas mentiras dizendo só a verdade, o jornal que mais se compra e que nunca se vende’ continua valendo hoje."

O publicitário Washington Olivetto
O publicitário Washington Olivetto na série documental '30 Segundos', sobre a história da propaganda no país - Rerprodução/Divulgação

Feito pela W/Brasil, de Olivetto, o filme teve como redator o publicitário Nizan Guanaes, com Gabriel Zellmeister na direção de arte e Andrés Bukowinski na direção do filme.

A série mergulha ainda na campanha do "garoto Bombril", protagonizada por Carlos Moreno por mais de 30 anos, que marca presença no "Guinness", o livro dos recordes, como a mais longa produção publicitária encabeçada pela mesma equipe.

A série também resgata o grande sucesso do slogan "não é nenhuma Brastemp", obra do publicitário Ricardo Freire, que conta como chegou à frase e como ela ganhou corpo.

Diretor dos filmes, que somaram uma série de mais de 70 peças, o cineasta Fernando Meirelles abre outro ponto relevante do documentário. Ele lembra que a produção publicitária num país onde a televisão mal recorria a produtoras independentes e o cinema caminhava a duras penas foi o berço de vários profissionais que hoje têm reconhecimento internacional pela sétima arte, como é o caso dele.

O ator Carlos Moreno em campanha publicitária do Pinho Bril, da Bombril - Divulgação

"Quando eu fui fazer ‘Cidade de Deus’, eu me sentia muito seguro porque eu filmava semanalmente já fazia dez anos", lembra.

A série expõe episódios da relação com a censura, revelando que anúncios de anticoncepcionais eram proibidos na TV. Olivetto conta como um filme da Jontex mostrava uma mulher desenrolando uma meia-calça na perna, em alusão ao preservativo. Ficou três semanas em cartaz apenas nos cinemas e logo foi suspensa.

Nos anos 1970, a produção da propaganda de alguma forma embarcou no otimismo vendido pelo governo militar, que surfou no tricampeonato da seleção brasileira. Da mesma forma, a edição mostra como o Plano Collor afetou a propaganda e como o Fusca de Itamar Franco voltou a rodar.

O machismo é visitado com filmes que hoje, vistos a distância, podem até suscitar risos, mas eram tristemente também um retrato da realidade. Em boa parte, a demora da quebra de rótulos desfavoráveis às mulheres nos comerciais se justifica pela ausência de representantes femininas no mercado publicitário, à exceção das pioneiras Ana Carmen Longobardi e Christina Carvalho Pinto.

O presidente Itamar Franco dentro de um Fusca em visita a Autolatina - Eduardo Knapp - 23.ago.93/Folhapress

Já a longa invisibilidade de negros nos comerciais é notada pelo documentário primeiramente por Sebastian, o garoto-propaganda da campanha "Abuse e Use C&A", que rompeu barreiras para estar em cena como protagonista. A inclusão racial, e também de representantes LGBTQIA+, é tratada nos dois últimos episódios, refletindo a evolução do tema nas duas últimas décadas.

Da mesma forma, a série nos lembra, não sem causar espanto, produções megalômanas anunciando cigarros, algo que se tornou proibido no Brasil em 2000.

Questionado se os algoritmos criados a partir da revolução trazida pela internet mais ajudam do que atrapalham, Tikhomiroff é enfático ao lembrar que o advento deles deve ser interpretado pela mente humana.

O ator e dançarino Sebastian e a top model Gisele Bündchen em campanha da C&A - André Schiliró

"Algoritmo funciona, mas tem que levar muita coisa em consideração, como eram as pesquisas de antigamente. Eu ainda confio muito mais na intuição. A intuição, historicamente, sempre foi o que mais funcionou em entretenimento. Existe até um estudo nos Estados Unidos sobre isso –90% dos grandes sucessos de séries americanas foram de produções recusadas no mínimo cinco vezes por canais, por análises frias e técnicas, com aquela famosa frase ‘isso não funciona’. Ninguém pode dizer isso."

Resumindo, diz o diretor, "os números não têm sensibilidade". "Tem que contar com seres humanos, não com máquinas. Há produções inteiramente baseadas cientificamente nos números, mas o público não é máquina, e, se o público não se engaja, nada acontece."

Olivetto faz coro. "Acho que neste momento, ingênua e burramente, alguém está imaginando que comunicação possa ser algo científico. Quando você fala em coleta de dados ou algoritmos, ótimo que exista, mas se não emocionar, não acontece nada. E, se não acontecer nada, não tem dado para coletar nem algoritmo para ver."

Questionado se esse cenário é reversível no sentido de voltar a valorizar a criatividade em detrimento dos números, o publicitário diz que "só quando chegarmos ao fundo do poço, e ainda falta muito para isso".

De nada adiantam mil rabiscos de multimídia e a tecnologia sem a tal da grande ideia, eles resumem. Você vai gastar dinheiro e não estará tocando a audiência. Essa é a conclusão de Olivetto escolhida por Tikhomiroff para encerrar a série.

Os episódios ouvem ainda Roberto Duailibi, Roberto Justus, Eduardo Fischer, Cristina Carvalho Pinto, Ana Carmen Longobardi, Andrés Bukowinski , Fábio Fernandes, Luiz Fernando Guimarães (que protagonizou memoráveis campanhas para a Caixa Econômica Federal e para as Havaianas), José Valien, o baixinho da Kaiser, e Silvio de Abreu, hoje renomado executivo de dramaturgia da própria HBO, que era, veja só, o ator dos comerciais que lançaram o leão do IR.

30 Segundos

  • Quando Estreia ter. (24), às 21h10, na HBO. Estará disponível na HBO Max com quatro dos cinco episódios a partir de qua. (25)
  • Produção Brasil, 2022
  • Direção João Daniel Tikhomirof
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