Descrição de chapéu
Livros Semana de 1922

'Modernidade em Preto e Branco' amplia Semana de 22 com mais Carnaval

Livro de Rafael Cardoso tem mais festa que poemas, mais tensão racial que heroísmo, mais samba popular que Villa-Lobos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Pedro Duarte

Professor de filosofia da PUC-Rio e autor de "A Pandemia e o Exílio do Mundo" e "A Palavra Modernista: Vanguarda e Manifesto"

Modernidade em Preto e Branco - Arte e Imagem, Raça e Identidade no Brasil, 1890-1945

  • Preço R$ 99,90 (372 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Rafael Cardoso
  • Editora Companhia das Letras

No século 19, Machado de Assis escreveu que a independência da literatura brasileira não podia ser conquistada em um dia, mas pausadamente, que não seria obra de uma geração, mas de muitas. Prefigurava, assim, a consciência de que um único evento, como a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, só poderia ser parte de um longo processo histórico, mais alargado e plural.

Não há, com isso, qualquer diminuição do modernismo originado na "Pauliceia desvairada" para os destinos da cultura do Brasil, mas um esforço de situar o movimento no tempo e no espaço. Já há décadas que a pesquisa acadêmica e intelectual explicita essa situação, e aí se destacam trabalhos de Rafael Cardoso, que ganham sua mais recente formulação em "Modernidade em Preto e Branco".

O novo livro apresenta qualidades já conhecidas do autor. Ele faz um recuo cronológico que evidencia linhas de continuidade onde antes se privilegiava a ruptura e adota uma visão social que transita entre formas artísticas como literatura ou pintura e a cultura popular urbana de massas, levando em conta design gráfico e canção, por exemplo.

De resto, alia a pesquisa empírica rigorosa a uma escrita ensaística inteligente, arejada. Isso tudo se condensa em uma obra que, no tempo, apresenta a cultura moderna em curso desde 1890 até 1945 no Brasil e, no espaço, sublinha sua expressão no cosmopolitismo do Rio de Janeiro, então capital federal.

O modernismo é interpretado não pelo protagonismo de 1922 ou de São Paulo, mas pensado em um campo ampliado histórico e geográfico, no qual são discutidas diversificadas relações do Brasil com o Ocidente europeu e consigo mesmo, tanto esteticamente quanto em suas implicações políticas.

Resulta daí que os assuntos do livro "Modernidade em Preto e Branco" não sejam apenas aqueles principais canonizados pelos estudos do modernismo.

Há mais Carnaval boêmio do que poemas; mais representações das favelas do que primitivismo idealizado; mais Visconti do que Brecheret; mais revistas ilustradas de arte gráfica, com K. Lixto e J. Carlos, do que a literatura de Mário de Andrade e Oswald de Andrade; mais tensão racial no Brasil, que só recentemente abolira a escravidão, do que o heroísmo bandeirante.

Há mais samba urbano popular, com Sinhô, do que música erudita clássica, com Villa-Lobos; mais atenção às pesquisas como a de Monica Pimenta Velloso sobre modernismo no Rio de Janeiro do que às grandes narrativas críticas, como a de Antonio Candido.

Nada disso deveria ser entendido como mera disputa ou bairrismo, nem como descoberta inaudita. Não se trata de fazer um jogo com vitoriosos ou derrotados na arte, mas de ampliar nossa compreensão do processo cultural, tendo em vista a pluralidade das correntes de modernização que desaguaram no país, todas elas permeadas de contradições.

No Brasil, afinal, a modernidade sempre foi craque em se conjugar com o arcaísmo, mais do que comprometida com sua superação, seja na estética, seja na política.

Contra o apagamento dos paradoxos artísticos e o exclusivismo de protagonistas de ponta, "Modernidade em Preto e Branco" pratica uma historiografia livre de crenças evolutivas segundo as quais o que vem depois se supõe melhor do que o que veio antes ou reduz o que veio antes ao papel de preâmbulo de si, como por vezes ocorre no uso do rótulo "pré-modernismo" para designar as criações nacionais entre 1890 e 1920.

Mesmo no que diz respeito ao modernismo mais centrado em São Paulo, tal gesto da historiografia sabe revelar que não houve um sereno desdobramento da Semana de 22 até a formulação da ideia de antropofagia em 1928, por Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, apontando inflexões distintas no movimento de vanguarda em sua tentativa tardia de pensar o Brasil, que teve derivas complexas como o nacionalismo do Estado Novo.

Isso tudo é analisado por Rafael Cardoso na parte final do livro, que confirma a perspectiva crítica de abordagem do passado a partir do presente, embora com cuidado para evitar os anacronismos.

É o ato de denunciar as projeções de identidade nacional que tomam brasileiros como herdeiros em partes iguais de um passado desigual, o que alimentaria a ideologia de que todo cidadão comunga das mesmas matrizes europeias, africanas ou ameríndias. Essas projeções, a despeito de poderem ter intenções anticolonialistas, às vezes apagariam e usurpariam vozes marginalizadas.

O modernismo atrelado à Semana de 22 fez muito na arte do Brasil e pelo Brasil. Seu significado vai das obras de Mário, Oswald e sua turma até o impacto sobre contemporâneos, como Carlos Drummond de Andrade, e movimentos que vieram depois, como a tropicália já nos anos 1960.

Mas o modernismo não foi tudo, não foi único, nem livre de contradições —aliás, o que costuma ser um luxo dos medíocres. Por isso, para além de polêmicas com o cânone estabelecido, a contribuição do livro de Rafael Cardoso está em dar a ver o que é eclipsado pelo astro deste modernismo, no caso outras constelações brilhantes da cultura do Brasil, que lançam luz sobre impasses e possibilidades da modernização no país.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.