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Ruy Castro

Como a Semana de 22 virou vanguarda oficial depois de 50 anos esquecida

Comemoração do cinquentenário em 1972 foi decisiva para entronizar modernistas

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Ruy Castro

Colunista da Folha e escritor. Seus livros mais recentes são “Os perigos do Imperador — Um Romance do Segundo Reinado” e “A Vida por Escrito — ciência e arte da biografia”, ambos pela Companhia das Letras."

[resumo] Semana de Arte Moderna teve seu processo de institucionalização iniciado em 1972, quando sua história tíbia passou a ser revista para ganhar a força de verdade incontestável, em meio a celebrações ufanistas da ditadura nos 150 anos da Independência, avalia autor.

Bem ou mal, tudo se discute no Brasil. Pode-se contestar a imagem nazarena, quase bíblica, de Tiradentes —ninguém sabe direito como ele era. Ou denunciar que, na cena do Ipiranga às margens plácidas, dom Pedro não estava a cavalo, mas num burrico —Pedro Américo, o pintor, quis tornar a coisa mais heroica e marcial. Ou insinuar que o marechal Deodoro, monarquista, não sabia que, ao depor dom Pedro 2º, estava proclamando a República —seus colegas só lhe contaram metade do plano.

Enfim, vale tudo. Menos questionar a Semana de Arte Moderna de 1922. E muito menos neste ano do seu centenário, quando se completará o processo, iniciado há 50 anos, de sua institucionalização.

Não se pode mais duvidar de que a Semana foi o "marco zero" da cultura brasileira. Tudo que aconteceu antes, de Pero Vaz de Caminha a Machado, não passou de um aquecimento para o main event, que foi ela, e dela derivou tudo de moderno que veio depois, da antropofagia à dieta do glúten. Suas bandeiras e conquistas foram decisivas: a Semana enterrou o parnasianismo, liquidou o soneto e desmoralizou os pronomes bem colocados.

A artista plástica Tarsila do Amaral durante entrevista em sua casa - 15.out.1972/Folhapress

É verdade que, exceto por dois ou três textos, não há como garantir o que se disse naquelas noites no Theatro Municipal de São Paulo, mas ali fomos certamente informados da existência do arranha-céu, do automóvel e do avião. Diz-se que a plateia, ofendida, vaiou os participantes —alguns deles, pelo menos.

Foi uma Semana de três noites, mais exatamente uma soirée, uma matinê e outra soirée. Mas suas consequências estão sendo estudadas até hoje. Nenhum outro ágape literário brasileiro a supera em bibliografia. Somente nos últimos meses, o volume de teses, estudos e análises a respeito já pode ser calculado em toneladas —as máquinas das editoras não param de rodar.

Nenhum teve sua história tantas vezes contada e convertida numa grande lenda urbana, a que novos episódios continuam sendo acrescentados, formando um épico em progresso. E nenhum teve a obra de seus luminares tão copiosamente aceita —dela fizeram-se e fazem-se filmes, peças de teatro, shows, discos, performances, documentários, exposições e, mais importante, incontáveis reedições de seus livros.

É verdade que tudo isso só se intensificou de 1972 para cá. Antes não era assim. Durante os primeiros e longos 50 anos a partir de 1922, só os sobreviventes da Semana e os suspeitos de sempre falavam dela. Os aniversários passavam em silêncio e muitos dos seus livros, hoje tão festejados, estavam estacionados nas edições originais, encalhadas nos armários de seus autores. Como seus livros não existiam, não influenciavam ninguém.

Mas as coisas mudaram. Hoje podemos escolher entre incontáveis reedições de cada título —pela capa, pelo prefácio, pelas notas de pé de página, pelas fotos, pelas ilustrações de Tarsila ou Anita. Pena que tais reedições se refiram exclusivamente aos livros de dois autores: Oswald de Andrade e Mário de Andrade.
Por algum motivo, os outros modernistas de primeira hora, homens que ajudaram a pôr a Semana em pé e viveram as vaias e os aplausos no Municipal, foram evaporados da saga. Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Sergio Milliet, Rubens Borba de Moraes e Candido Motta Filho tornaram-se no máximo figurantes e, hoje, se e quando lembrados, é sempre por algum motivo extra-modernismo —Rubens Borba de Moraes passou à posteridade como bibliófilo; Candido Motta Filho, como avô de Nelson Motta; e Sergio Milliet, por que mesmo?

Participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no teatro Municipal, em São Paulo (SP) - Museu da Imagem e do Som

E qual fã da Semana se lembrará de Tácito de Almeida, Agenor Barbosa e A. C. Couto de Barros? É como se só tivessem existido para fazer número entre o abrir e o fechar das cortinas. E há outro que, não podendo ser extinto da história —afinal, estava lá, no palco, comungando intimamente com os campeões—, foi reduzido ao papel de inimigo: Plínio Salgado.

O processo de depuração da Semana não podia se limitar ao elenco. Era preciso estendê-lo à narrativa —porque aquela que os documentos da época contavam era tíbia, micha, inconclusiva. Em 1972, ano de oba-obas e triunfalismos oficiais, deu-se início à sua atualização. Com base nas versões revistas e ampliadas dos fatos por Oswald a partir dos anos 1940 e, desde então, tomadas como verdades pétreas, saiu toda uma nova história da Semana e do modernismo. Da qual, assim como da infalibilidade do papa —no caso, papas—, não é permitido duvidar.

Em seu "Diário Confessional", numa anotação de 23 de janeiro de 1952, Oswald de Andrade cita o então presidente Getúlio Vargas, "numa frase que corre mundo", ligando a Semana de Arte Moderna à "renovação política de 1930". E Oswald acrescenta: "Eu mesmo já juntei, no ano de 1922, dois fenômenos de explosão nacional —a Semana, em fevereiro, e a insurreição do Forte de Copacabana, em julho. E esta prenunciava a revolução de 1924 em São Paulo e o vitorioso movimento de 30". E com isso temos, segundo Oswald, o novo DNA da Semana como um movimento politicamente contestador.

Antes de correr mundo, a frase de Getúlio nasceu num discurso escrito para ele por um de seus assessores no Estado Novo, o poeta Cassiano Ricardo, o mesmo que Oswald, um dia, chamara de "ratazana ao molho pardo" e, depois, pensando melhor, classificaria de "o maior poeta brasileiro". Quanto à relação que Oswald diz ter feito entre a Semana e as insurreições políticas que se lhe seguiram, seria interessante conhecer esse documento —desde que de 1922, não dos anos 40.

Se ele existir, será a revelação de que os homens de 22 contribuíram para a derrubada de um regime, a República do Café com Leite, ao mesmo tempo em que eram seus ardentes partidários. Mas é improvável que tal papel apareça. Em 1922, Oswald, Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida, Candido Motta Filho e Rubens Borba de Moraes, filhos de ricas famílias cafeeiras e sem um único dia de trabalho em seus currículos, eram dândis ligados ao PRP (Partido Republicano Paulista), o braço político das oligarquias, liderado pelo então governador de São Paulo Washington Luiz.

O PRP, coadjuvado de longe pelo PRM (Partido Republicano Mineiro), conduzia os destinos da República e, do seu ponto de vista, com grande sucesso —o analfabetismo cobria 70% da população e as eleições eram viciadas para que as sucessões políticas não oferecessem surpresas. O órgão oficial do PRP era o jornal Correio Paulistano, cujo redator político, Menotti del Picchia, ia diariamente ao Palácio dos Campos Elíseos para submeter a manchete e o editorial a Washington Luiz —este, por sinal, crítico ad hoc de dança do jornal.

Em 1922, no Rio, e em 1924, em São Paulo, grupos de jovens oficiais do Exército foram às armas contra o regime. O governo federal esmagou as duas rebeliões, à custa do massacre dos "18 do Forte" por 2.000 soldados nas areias de Copacabana, em 22, e do bombardeio aéreo da cidade de São Paulo, em 24.

Se os modernistas, em pleno tiroteio, escreveram a favor dos insurgentes que estavam dando a vida contra o governo, esses textos também ainda não apareceram. Nem aparecerão, por um simples motivo: eles estavam do lado do governo e,indiretamente, os tiros eram também contra eles.

Um relato hilariante seria o do poeta francês Blaise Cendrars. Mal chegado a São Paulo naquele julho de 1924, teve de fugir correndo com seus amigos Oswald, Tarsila, dona Olivia Penteado, Paulo Prado, René Thiollier e outros, rumo às suas fazendas no interior, com as balas zunindo por suas orelhas (Menotti fugiu de trem com o novo governador Carlos de Campos). Terá Blaise se perguntado quem atirava contra quem e por quê? Dias depois, com a derrota dos insurgentes e o restabelecimento do status quo, todos voltaram aliviados para seus salões. O modernismo era o status quo.

A conversão da Semana a um contexto mais conveniente se faz até sozinha. Em muitos artigos e reportagens sobre os desdobramentos revolucionários da Semana, é intrigante a ocorrência de observações como "Não por coincidência, poucas semanas depois, fundou-se o Partido Comunista do Brasil" —como se uma coisa tivesse a ver com a outra. Mas por que teria?

O partido foi fundado sob pesada clandestinidade, no Rio e em Niterói, e, como é óbvio, nenhum jornal noticiou —donde nenhum membro da Semana ficou sabendo. A Semana, por sua vez, também se deu quase na clandestinidade, já que os jornais do Rio e do resto do país a ignoraram e, com isso, nenhum dos fundadores do partido (nem mesmo Astrojildo Pereira, o único intelectual entre eles) tomou conhecimento.

Mas a principal contradição deste "não por coincidência" é que, mesmo que a Semana e o Partido Comunista soubessem um do outro, não podiam estar em lados mais opostos: os comunistas, a fim de ver o sangue dos latifundiários, e os modernistas, filhos dos ditos latifundiários ou comensais de seus salões.

Será possível imaginar o barbeiro Abilio Nequete, primeiro secretário-geral do partido, tendo o presidente Epitácio Pessoa como seu padrinho de casamento com uma tecelã? Não. Mas foi o que aconteceu em 1926, quando Oswald e Tarsila se casaram tendo o presidente Washington Luiz como padrinho. Um momento brilhante da alegre camaradagem entre o modernismo e o poder se deu em maio de 1929, na campanha presidencial de Júlio Prestes, governador de São Paulo e candidato de Washington Luiz à sua sucessão no Catete.

Oswald engajou um certo "Clube da Antropofagia" —o que seria?— nos festejos e promoveu recital no Theatro Municipal, para o qual contratou no Rio o sambista Sinhô e lhe encomendou um samba em homenagem a Júlio Prestes. O qual foi "Eu Ouço Falar" ("Eu ouço falar/ Que para o nosso bem/ Jesus já designou/ Que seu Julinho é quem vem..."), "dedicado a Oswald de Andrade".

Um dos organizadores do evento, o jornalista Raul de Castro, assim o descreveria no Diário Popular: "Depois do espetáculo, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral ofereceram uma festa a Sinhô", escreveu. E continuou: "Também aí o sr. Júlio Prestes, que via com olhos simpáticos o movimento antropofágico, compareceu, para se misturar com Raul Bopp, Rubens do Amaral, Jayme Adour da Câmara, Oswaldo Costa, Nelson Tabajara, Pagu, Celso Antônio, Brecheret, Gilberto Araújo e outros desvairados intelectuais.

A certa altura da festa, Sinhô se instalou no piano e tocou um saracoteado cateretê paulista, para que a cozinheira de Tarsila desse uma demonstração de sua habilidade coreográfica. Não resistindo ao ritmo vivaz da música de sua terra, o [governador] se levantou da poltrona e desafiou a cozinheira de Tarsila para novos passos da dança de terreiro. O acontecimento causou sensação porque o sr. Júlio Prestes se mostrou um hábil dançarino de cateretê".

Infelizmente, o cateretê antropofágico ficaria por ali. "Eleito" presidente em março de 1930, Júlio Prestes não chegou a tomar posse. Com a derrubada de Washington Luiz no dia 24 de outubro e sua substituição por Getúlio Vargas, era o fim da República do Café com Leite. E, desta vez não por coincidência, do modernismo.

Washington Luiz, pedalando o ar, deixou o Palácio Guanabara, no Rio, e foi conduzido ao Forte de Copacabana, onde passou os 30 dias seguintes até ser embarcado para Lisboa. Em São Paulo, Júlio Prestes abrigou-se no consulado inglês, do qual partiu para Londres e, depois, para Paris.

Já as biografias de Oswald, casado então com Pagu, omitem seus passos naqueles dias. Não se sabe se foi procurado, solidarizou-se com os amigos em desgraça ou foi apenas ignorado. Mais provável esta última hipótese, já que Rudá, seu filho com Pagu, nascera apenas um mês antes e não se sabe de fugas ou escapadas do casal. Seria fascinante saber por onde andou Oswald naqueles últimos meses de 1930 (desde que em texto da época, não de 20 anos após o fato), mas isso não é possível.

Nos livros, sua história dá um salto e pula direto para sua conversão política, de um capitalismo liberal e festivo para um ardente esquerdismo, induzido por Pagu. Vira-se mais uma página e, em 1931, já temos um Oswald magicamente "filiado ao Partido Comunista". Mas não há como comprovar essa filiação. Ela não consta dos registros do partido, nem das memórias dos comunistas de então nem dos prontuários da polícia.

Não se sabe se seu nome foi submetido por alguém, severamente analisado e, se aprovado pelo grupo, para que célula ele foi designado e sob a responsabilidade de quem. Fala-se de uma breve aproximação com o jornalista e escritor Pedro Motta Lima, autor do primeiro romance proletário, "Bruaá", de 1929. Mas Motta Lima, assim como Astrojildo Pereira, Otavio Brandão e Leoncio Basbaum, estava sob ameaça de expulsão pelos novos dirigentes operários, empenhados em impor a linha obreirista ordenada pela Internacional.

Eles eram jornalistas e intelectuais, daí sujeitos a "desvios pequeno burgueses". Pois se nomes como aqueles, com uma sólida história no partido, já não eram tidos como confiáveis, imagine Oswald, incapaz de sustentar uma opinião por dez minutos. O próprio jornal "O Homem do Povo", que ele editou com Pagu em 1931 e só durou duas semanas, propunha-se a falar para as massas, mas não conseguia conter sua vocação para a piada. Nenhum homem do povo o lia.

Afastada a hipótese de filiação, restou a Oswald ser, na prática, um torcedor do partido, condição em que acompanhou Pagu em algumas ações, no papel de babá de Rudá —ficava com ele em casa enquanto ela saía com uma arma na bolsa. Como algumas dessas ações se passavam no Rio, dizia-se que Oswald era comunista no Rio e capitalista em São Paulo, onde se sustentava com a venda de terrenos da família —entre outros, o bairro de Cerqueira César, que lhe tomou a vida inteira para liquidar.

As peripécias políticas de Oswald costumam ser confundidas com as de Pagu, esta, sim, militante que pagou o preço —perseguições, risco de vida e 23 prisões. Até que, em 1932, o partido ordenou a Pagu que se afastasse de Oswald, por ele ser "ligado a burgueses". E era mesmo, um desses o advogado Vicente Rao, velho amigo dele e, dali a pouco, ministro da Justiça de Getúlio (1934-37).

A tentativa de atribuir à Semana e a si próprio uma face progressista foi uma preocupação constante de Oswald a partir dos anos 1940. Para isso, precisou "corrigir" fatos, rever opiniões e antecipar datas. Fez isso, por exemplo, na edição de 1940 de seu romance "Os Condenados", que ele informa ter "sido escrito de 1917 a 1921".

Mas, ao se ler as últimas páginas de "A Escada", terceira parte do livro, o personagem, nitidamente Oswald, renega a sua "cretina aristocracia de artista" e se assume como um soldado "a reboque do proletariado", "preso para sempre às cordas da revolução social". Oswald, em 1921, um soldado a reboque do proletariado e preso às cordas da revolução social? Nossa Senhora Aparecida, sua santa de devoção e a quem ele dedicava livros, não iria gostar.

Mas, de fato, não se pode fugir das coincidências. Terá sido por uma delas que, depois de levar seus primeiros 50 anos em silêncio e sem queixas, tudo tenha mudado para a Semana de Arte Moderna a partir de 1972? Foi o ano em que, às retumbantes comemorações do Sesquicentenário da Independência, somou-se o cinquentenário da Semana, subitamente festejado com pompas. Por que isso de repente?

O escritor Franklin de Oliveira, em "A Semana de Arte Moderna na Contramão da História" (Topbooks, 1993), não viu nisso uma coincidência. "O mais perverso dos ditadores militares do ciclo de 64, o general Médici, consagrou a Semana de Arte Moderna como o evento central da cultura brasileira contemporânea. (...) Quando a Semana completou 50 anos, [ele] a incorporou ao calendário do putsch que instaurou no país o poder militar."

Outro escritor, Luis Martins, ex-marido de Tarsila, viu nas comemorações um exagero. Para ele, a Semana fora "a batalha de Itararé —aquela que não houve". E Yan de Almeida Prado, veterano da Semana, em seu libelo "A Grande Semana de Arte Moderna" (Edart, 1976), listou as entidades que inflaram o cinquentenário: o Ministério da Educação, o Conselho Federal de Cultura, o governo do Estado de São Paulo "e outras entidades oficiais e para-oficiais".

Tudo isso resta ser averiguado, mas alguns fatos saltam do noticiário daquele tempo. Na esteira do "Brasil grande" e do "milagre brasileiro", o governo Médici decidiu usar o sesquicentenário da Independência para gerar um sentimento ufanista e positivo, daí buscar no passado "episódios inspiradores" —o principal, trazer de Portugal os ossos de dom Pedro 1º, que chacoalharam durante meses pelo país até ganharem merecido descanso no Museu do Ipiranga.

Todos os ministérios foram chamados a criar eventos. O da Educação era comandado pelo coronel Jarbas Passarinho, não um militar comum. No Pará, fora cronista e editor de revistas de caserna, publicara em 1959 um romance, "Terra Encharcada", premiado pela Academia de Letras local, e se achava um intelectual. Sim, é o mesmo que, ministro do Trabalho no governo Costa e Silva, passou à história por sua frase no dia 13 de dezembro de 1968, ao assinar o AI-5: "Às favas os escrúpulos da consciência".

À frente do MEC em 1972, pode ter sido dele a ideia de associar a Semana aos conceitos de "independência e nacionalismo", motes do sesquicentenário, e, com o apelo ao Pau Brasil e à Antropofagia, ao "resgate dos valores indígenas". O órgão executor das comemorações no setor era o Conselho Federal de Cultura, criado em 1967 no governo Castello Branco e cujo primeiro diretor, Josué Montello, declarou ser sua principal atribuição "melhorar a imagem do regime ante os meios de
comunicação".

Em 1972, o diretor do conselho era o político e historiador Arthur Cezar Ferreira Reis, próximo de Luiz da Camara Cascudo e Ascenso Ferreira, modernistas do Norte e do Nordeste. Outro braço do MEC atuante nas comemorações foi o Instituto Nacional do Livro, dirigido pela romancista Maria Alice Barroso.

Ela aprovou a ideia de o INL dividir com a editora Civilização Brasileira a publicação da obra completa de Oswald de Andrade em 11 volumes a preços subsidiados, cada exemplar custando metade que um livro convencional (saíram dez). Por que Oswald, até então um autor invendável, e por que a Civilização? Porque, em 1971, com a perseguição ao editor Ênio Silveira pela ditadura, a Civilização estava sob o comando de Mario da Silva Brito, velho amigo de Oswald e autor de "História do Modernismo Brasileiro", então a Bíblia da Semana.

Os subprodutos das comemorações foram muitos. Oswald e Mário de Andrade, este com sua obra na Martins, tornaram-se questões do vestibular, o que fez de seus livros leitura obrigatória pelos estudantes. A USP comprou a coleção e o arquivo de Mário. O governo de São Paulo adquiriu a biblioteca de Guilherme de Almeida e fez da sua casa um museu.

Houve uma grande exposição no Masp. E o próprio Ministério das Relações Exteriores, sob o embaixador Mario Gibson Barbosa, promoveu uma exposição, "Brasil - 1º Tempo Modernista 1917-29", que levou o ano circulando pelas embaixadas do Brasil na Europa e na América Latina.

A ideia de o governo exibir a Semana como um momento de rebeldia da cultura brasileira não se chocava com o fato de que, em 1972, a imprensa estava sob censura, o governo institucionalizara a tortura e, sob o decreto 477, professores e estudantes acusados de subversão podiam ser expulsos e presos. Afinal, em 1922, não havia contradição entre o palco do Municipal e a República do Café com Leite.

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