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Artes Cênicas

Ópera 'Aleijadinho' detona 'fora, Bolsonaro' ao mostrar dor do artista

Espetáculo estreou ao ar livre em Ouro Preto, também celebrando a ancestralidade africana do personagem

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Aleijadinho

Foi uma típica aglomeração humana, resultante do relaxamento das restrições da pandemia. O largo de Coimbra, em Ouro Preto, no interior de Minas Gerais, estava completamente lotado na última sexta-feira para a estreia, em praça aberta, da ópera "Aleijadinho", com música de Ernani Aguiar e texto de André Cardoso.

Nas janelas dos casarões coloniais, ao redor, pessoas também se aglomeravam para buscar uma visão privilegiada. O palco foi montado justamente em frente à igreja de São Francisco de Assis, cujo projeto —bem como o relevo esculpido que contorna a porta principal— são do próprio Antônio Francisco Lisboa. À esquerda se posicionou a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, dirigida por Sílvio Viegas.

Elenco da ópera 'Aleijadinho', com música de Ernani Aguiar e texto de André Cardoso - Paulo Lacerda/Divulgação

Na estreia ao ar livre, obviamente, vozes e instrumentos foram amplificados (com qualidade). Uma produção acústica poderá ser vista no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, a partir de 14 de maio.

Desde "A Coroação de Poppea", de 1643, de Claudio Monteverdi, nos primórdios do gênero, óperas eventualmente fazem uso de acontecimentos e personagens históricos para construir suas narrativas. Exemplos são também "Júlio César no Egito", de 1724, de Handel, e, já em nossos tempos, "Nixon in China", de 1987, de John Adams.

Na maior parte dos casos, no entanto, a história factual não é um fim em si. Um conflito —em geral um drama pessoal ou amoroso— serve de fio à narrativa e aquece a tensão dramática.

Construído a partir de extensa pesquisa historiográfica acadêmica, o libreto de Cardoso preza a precisão, especula sem cair em anacronismos, mas ao mesmo tempo segura um pouco a fantasia, contém o furor poético.

Com isso, a maioria das personagens não evolui na narrativa. Inconfidentes como Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto (interpretados respectivamente pelo tenor Guilherme Moreira e pelo barítono Pedro Vianna —vale a pena, aliás, guardar esses nomes), assim como o músico Emerico Lobo de Mesquita (barítono Lício Bruno) e Vicente Ferreira (baixo Mauro Chantal) apenas passam pela história.

Projeto de cenografia da ópera 'Aleijadinho' diante da Igreja de São Francisco de Assis, no Largo do Coimbra, em Ouro Preto, Minas Gerais - Divulgação

O próprio Aleijadinho —em papel que parece ter sido concebido especialmente para o barítono Johnny França, em grande atuação vocal e cênica— tem sua história contada mais "de fora para dentro"; a ópera foca o contexto histórico, na descrição das terríveis dores e limitações físicas que gradualmente enfrentou, mas pouco especula acerca de seus dilemas artísticos e sua visão de mundo.

Por outro lado, muitas citações —poéticas e sonoras— permeiam a obra. Ernani Aguiar é um magnífico orquestrador, e domina com perfeição o artesanato da escrita vocal (é também autor de uma importante produção coral). Partindo de um lundu antigo e de trechos das "Cartas Chilenas", de Gonzaga, a ópera se torna, aos poucos, mais fortemente autoral.

Dois momentos são especialmente impactantes —a superposição de um trecho da composição colonial brasileira "Tractus para o Sábado Santo", de Lobo de Mesquita, contemporâneo de Aleijadinho (e afro-brasileiro como ele), durante eloquente cena, e a forte menção aos trechos bíblicos esculpidos por Aleijadinho nos pergaminhos das estátuas dos profetas em Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Belos momentos da partitura são igualmente as contrapontísticas serestas, com sabor da nostalgia popular luso-brasileira.

Um mergulho visual nas obras de Aleijadinho, bem como a elaboração a favor de uma maior conexão da personagem com sua ancestralidade africana são frutos da impecável direção cênica de Julianna Santos e da cenografia de Renato Theobaldo.

E, embora tardio, o conflito dramático acaba surgindo no ato final da ópera, com a problemática relação triangular entre o escultor, seu filho, Manuel Francisco (interpretado pelo tenor Mar Oliveira), e sua nora, a parteira Joana (personagem da soprano Luanda Siqueira).

Livre entre o céu noturno e a história do Brasil, o público não arredou pé durante os três atos —um belo silêncio predominou durante a maior parte do espetáculo, apenas quebrado por aplausos e pelo coro "fora, Bolsonaro"— entoado não de forma mecânica, mas como resposta ativa aos próprios eventos cênicos.

A praça ainda é do povo. E não faltam praças na cidade de Ouro Preto.

O crítico viajou a Ouro Preto (MG) a convite da Fundação Clóvis Salgado

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