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Não ouvir Guilherme de Pádua ou sua defesa sobre o crime pode ser um perigo

Documentário não deu espaço para a defesa, fortalecendo a narrativa de que houve parcialidade na cobertura do caso

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Bernardo Braga Pasqualette

Advogado e jornalista, é autor de "Daniella Perez - Biografia, Crime e Justiça" (ed. Record)

Em virtude da estreia, na última quinta-feira, da série televisiva "Pacto Brutal", sobre o crime que vitimou a atriz Daniella Perez, um elo uniu boa parte das reportagens que abordaram o tema —o questionamento acerca da ausência de participação dos condenados pelo crime e de suas defesas.

Os diretores da série justificaram o fato afirmando que as teses dos condenados não seriam "substanciais" e que eles já teriam abordado o tema ao longo dos últimos 30 anos por meio da imprensa. Será?

Guilherme de Pádua lê recorte de jornal durante seu julgamento, em 1997 - Patrícia Santos/Folhapress

Durante o período compreendido entre o final de 1992, data do crime, e o primeiro semestre de 1997, quando ocorreram os julgamentos, as três partes —família da vítima e dois acusados— e seus advogados se manifestaram, em várias oportunidades, publicamente sobre o tema.

Todos tiveram espaço na imprensa para expor suas versões. Ponto para o jornalismo profissional, que cobriu o trágico episódio com isenção, ouvindo todas as partes envolvidas.

A partir de 1997, a situação se modifica. Voltemos às justificativas atribuídas ao roteirista da série, Guto Barra —aqui é imprescindível citar nome e sobrenome—, para não ouvir os condenados pelo crime. "Ao longo destes 30 anos, eles [Guilherme de Pádua e Paula Thomaz] usaram bastante a imprensa para trazer as versões que eles tinham do crime, e essas teses foram sempre mudando."

Falso. Pelo menos, em relação a Paula Thomaz. A então acusada expôs formalmente sua versão em 15 de janeiro de 1993 —não estava presente no momento do homicídio, o que juridicamente se denomina negativa de autoria. Tal versão se manteve até maio de 1997, quando Thomaz foi julgada e condenada pelo placar estreito de quatro a três.

Um voto selara o seu destino.

Desde então, Thomaz foi procurada para dar a sua versão em pelo menos quatro oportunidades —por este jornal, em 2006, pela Record, em 2012, pelo jornal O Globo, em 2015, e para um depoimento para o livro que escrevo sobre o caso, em 2020 e 2021.

Jamais quis se manifestar. Direito dela. "Nada a declarar", para lembrar a expressão consagrada por Armando Falcão, ex-ministro da Justiça, também é uma resposta. Mais que isso, faz parte da liberdade de expressão.

Por outro lado, ouvir ou não as partes e seus advogados acaba por ser uma prerrogativa de todos aqueles que se propõem a narrar o caso. O que não é direito de ninguém é agredir a realidade. É possível legitimamente contraditar a versão de Paula Thomaz e até rememorar que policiais afirmaram ter ouvido uma confissão da então suspeita, desde sempre negada por Thomaz.

Afirmar que a sua versão variou ao longo do tempo não se pode fazer. Tampouco é possível dizer que ela vem se manifestando sobre o tema ao longo dos últimos anos.

Tudo se torna ainda mais complexo quando se revela que o escritório de advocacia que defendeu Paula Thomaz afirma ter procurado os responsáveis pelo documentário para expor a versão dela sobre o crime. Sua defesa se propunha a fazer isso se baseando nos autos do processo —exerceria, assim, legitimamente o contraditório. Não houve acolhida.

Tampouco se ouviu o advogado Paulo Ramalho, defensor de Guilherme de Pádua. Uma lástima. Sua participação no processo vai muito além de sua performática atuação durante o julgamento. Provavelmente, o traço mais distintivo de sua atuação foi o de jamais permitir que o seu cliente fosse aviltado a nível pessoal.

Quando se iniciou a espetacularização do passado dos acusados, o defensor clamou por "um julgamento jurídico, e não moral". Com sua conhecida perspicácia, rebateu de forma elegante os ataques misóginos e homofóbicos dirigidos aos réus. "E se o Guilherme fosse padre, e Paula, freira, faria alguma diferença?"

Nenhuma. Ambos deveriam responder pelos seus atos, jamais por pretensas escolhas em suas vidas particulares –que, frisemos, não importam a ninguém além deles mesmos. Como os ataques continuaram, à época o advogado não teve escolha a não ser partir para a briga. "Se a acusação acha que pode julgar a questão da sexualidade de Guilherme, vou fazer o mesmo em relação a todos."

Não se sabe o que Ramalho tinha a dizer, mas se conhece o efeito de sua fala –mais adiante os insultos cessaram. A própria promotoria veio a público afirmar que a sexualidade do então casal não estava em julgamento. Melhor assim.

Em um caso que ainda gera enorme clamor público, é natural que cada parte defenda com afinco o seu ponto de vista. Gloria Perez, invocando o direito comparado, certa vez afirmou que se o crime tivesse ocorrido em outro país, provavelmente os condenados cumpririam uma pena significativamente maior atrás das grades.

Já a defesa de Paula Thomaz lembrou que, se o julgamento ocorresse no mundo anglo-saxão, sua cliente nem sequer teria sido condenada, já que nestes países, via de regra, se exige unanimidade para que haja condenação.

Tudo tem os seus dois lados.

Guilherme de Pádua, por sua vez, sempre alardeou publicamente que fora vítima de uma campanha orquestrada pela mídia. Após o julgamento, vociferou "eu era réu de um jogo de cartas marcadas". Dezoito anos após o crime, num programa de televisão, foi ainda mais longe e afirmou que sua versão não havia sido divulgada pela imprensa e que nunca deram ouvidos a ele.

Parolagem. Uma aprazível tarde na Biblioteca Nacional, com uma parada de cerca de uma hora na seção de consulta a periódicos, é suficiente para desmentir tal narrativa.

Neste momento, no entanto, tudo se inverte. Parece um déjà-vu da década de 1990, quando Guilherme de Pádua se dizia vítima de perseguição. Não é. Se há motivos justos para não dar holofotes a ele nem ouvir a sua defesa técnica, cabe ao público julgar. Um fato, no entanto, é incontestável –agora, de fato, ele e seu advogado não foram ouvidos.

Decerto que o caso Daniella Perez é um dos mais complexos da criminologia nacional. Envolve um pouco de tudo –culpabilização da vítima, assédio contra a mulher em seu ambiente de trabalho, sexismo, homofobia, sensacionalismo, livros proibidos pela Justiça, machismo, desinformação em torno de religiões de matriz africana, publicidade opressiva, desavença pública entre jornalistas e artistas do mesmo grupo de comunicação e por aí vai.

Não é pouca coisa. Demanda, assim, uma análise complexa em todas as suas dimensões e, em minha visão, é imprescindível realizar uma escuta ativa daquilo que acusação e defesa têm a dizer.

É possível elencar alguns bons motivos para tanto. Mas, neste momento, basta um –não ouvir os condenados e suas defesas poderá legar ao futuro mais dúvidas do que certezas, e fortalecer a narrativa de que houve, e ainda há, parcialidade na cobertura do caso.

Neste ano, Guilherme de Pádua parece ter conseguido aquilo que o jornalismo profissional sempre negou a ele nessas últimas três décadas –espaço para que a sua postura de vitimização possa prosperar baseada na premissa de que foi sonegado a ele o direito de expor sua versão.

E é exatamente aí que mora o perigo.

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