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'Ser Sonoro' abre ouvidos leigos para os mistérios e as delícias da audição

Ao investigar memórias ancestrais e as estruturas do som e do silêncio, podcast honra o meio em que foi desenvolvido

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São Paulo

Ser Sonoro

  • Onde Disponível nas plataformas de streaming
  • Apresentação e produção Fernando Cespedes
  • Distribuição Tab UOL

Poucos trabalhos são capazes de aproximar a academia do público, sobretudo pela linguagem destinada à avaliação dos pares, protocolar e cifrada. E se Carl Sagan ou Oliver Sacks angariaram novos fãs para a astronomia e a neurologia com seus livros, Fernando Cespedes conseguiu com seu "Ser Sonoro" —tese de doutorado que virou podcast— abrir os ouvidos de milhares de leigos.

E tudo com uma ajudinha bem estrelada —da flauta de Pixinguinha e o silêncio de John Cage à guitarra de Jimi Hendrix, além de sons dos quase extintos macacos guigós e orações do povo indígena pataxó. E Cespedes tem lábia, didática e mais de 20 páginas de referências bibliográficas para costurar tudo em uma saga sentimental e biológica pela história do som.

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Logomarca do podcast 'Ser Sonoro' - Divulgação

Ouvimos as chuvas londrinas e como, na relação com a revolução industrial, elas desembocam no heavy metal do Black Sabbath. Ou como o silêncio é também capaz de sustentar tantos sons, com direito a uma introdução a Cage fora dos signos da vanguarda e da erudição, mas de maneira lúdica, com a audição de três versões da peça "4'33''" —e como ela se relaciona com desde o lo-fi até as músicas de elevador.

E por que não ouvir também como o jovem Mozart mostra todo seu lado rockstar, após apresentar a sinfonia de número 31 em Paris e, excitado pela recepção do público, vai tomar um sorvete e rezar o terço? Parece uma "egotrip" muito particular aos austríacos, como já bem criticou o ácido Thomas Bernhard. Afinal, quem, senão Gustav Mahler, para reunir mais de mil músicos em uma apresentação?

Talvez só não pior que o rigor febril de Richard Wagner em separar a paisagem sonora do mundo musical e exigir respeito tamanho a "Parsifal" que, ao final da ópera, ninguém aplaudiu.

Quando atinge esse nível de clareza (e de consequente aproximação do ouvinte), sabemos não estar diante de um simples diletante.

Só por todo o conhecimento e pela coleção de anedotas, "Ser Sonoro" já merece atenção. É um trabalho hercúleo, incompleto, no bom sentido, misto de cartilha e almanaque. Ainda, porém, atinge algo mais raro na miscelânea de podcasts com os quais somos bombardeados —não é só informação.

Ao contrário de outros programas complexos demais para o meio —como o português "Agora, Agora e mais Agora", do jornal Público, que deve ser melhor digerido quando for lançado em livro—, o trabalho de Cespedes só poderia existir em som. Vale pensar ainda no fenômeno "A Mulher da Casa Abandonada", deste jornal, criado e apresentado por Chico Felitti —experiente jornalista com uma notável obra em texto, que também poderia ser o meio para sua última incursão. O áudio, porém, deu outro impacto e personalidade à história investigativa.

Mais do que bem-vindo, o que "Ser Sonoro" faz é um deslocamento fundamental que rompe uma subserviência do som às imagens —o que o próprio Cespedes comenta no último episódio da temporada, ao pensar como "'ver com os próprios olhos' vale muito mais do que 'ouvir dizer'".

A riqueza do "Ser Sonoro" —a tese— daria provavelmente um documentário convencional, com clichês dignos de Discovery, enquanto a montagem conduziria nossos olhos por imagens que não traduzem a experiência de outra natureza.

Aqui, o conjunto só se fecha quando nos concentramos com os fones de ouvido, desligados de estímulos visuais (da mesma forma que o melhor cinema está mais próximo da pintura que da fotografia, e por aí vai). Ainda assim, como é possível "ver" desde o primeiro episódio, quando somos convidados a refletir sobre nossos antepassados, a narrativa toma um peso emocional forte.

Isso se dissolve em alguns episódios, até para o bem do espectador. Cespedes, muitas vezes, na louvável posição de pesquisador e narrador, pega na mão do ouvinte para não deixar que ele se perca no mar de informação.

Alguns desses auxílios, porém, devem agradar mais a quem escuta um episódio por semana, ou não tem a memória lá muito boa, porque às vezes são repetidos trechos inteiros do programa anterior para localizar o ouvinte.

Da mesma forma, a voz que nos conduz cria uma intimidade única —é só ela quem vai nos guiar, para além de todas as músicas que acompanhamos, e cuja lista pode ser consultada no site do podcast.

Se não enjoa, porém, algumas ênfases e trechos mais dramáticos cansam o espectador quando se repetem fórmulas e pausas tiram um pouco da naturalidade da narração. Ao fim, isto é só uma nota de rodapé para um programa intimista, a ser obrigatoriamente escutado ao pé do ouvido.

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