Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Descrição de chapéu Independência, 200

'É chocante ver o Estado brasileiro matando negros todos os dias', diz Isabél Zuaa

Nascida e criada em Lisboa, atriz e dançarina está no elenco de dois produtos audiovisuais brasileiros que lembram os 200 anos da Independência

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A atriz portuguesa Isabél Zuaa, em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

"Eu sempre conto quantas pessoas negras têm nos lugares brasileiros onde eu entro, e tomo nota mentalmente se elas estão servindo ou sendo servidas", diz Isabél Zuaa, quando chega ao lobby de um hotel na região dos Jardins, em SP, na semana passada. Naquela ocasião, ela era a única.

Vestida com um terno verde limão acinturado, com uma camiseta também verde por dentro, cabelos trançados e com contas pesadas nas tranças que emolduram seu rosto, Isabél tem o porte elegante de quem treinou dança durante toda a vida.

E foi isso mesmo. Aos 34 anos de idade, ela tem 29 de balé, 16 de experiência como atriz e 12 de vivência no Brasil. Já experimentou o racismo brasileiro em muitas situações. E conta que a grande diferença entre o racismo do Brasil e o que existe em Portugal, onde nasceu, é que "o racismo brasileiro mata de uma forma brutal".

A atriz Isabél Zuaa
A atriz portuguesa Isabél Zuaa, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

"É muito chocante ver o Estado brasileiro matando negros todos os dias", diz. "Também me espanto quando vejo um jovem brasileiro sendo racista, xenófobo, homofóbico", continua Isabél. "Claro que todos nós fomos criados de uma forma racista e homofóbica, uns mais do que os outros, uns sofrendo na pele e outros fazendo sofrer. Mas quero acreditar que estamos nos desconstruindo globalmente para nos livrarmos desses desafetos", diz ela.

Era o começo da noite de um dia de semana, e a atriz havia desembarcado em SP naquela manhã, vinda de Lisboa, para acompanhar o lançamento do filme da cineasta Laís Bodanzky, "A Viagem de Pedro". Nele, Isabél faz um papel pequeno, mas marcante, com direito a uma cena de sexo com Cauã Reymond, que tem o papel principal, de Dom Pedro 1º. O filme entra em cartaz nos cinemas na próxima quinta (1°).

Sua personagem, Dira, é uma fugitiva que entra no navio inglês que leva Dom Pedro a Portugal, em 1831, nove anos depois de proclamar a independência do Brasil, para guerrear contra seu irmão, que tomou o reino do país europeu. Durante as filmagens, Isabél criou duas cenas fundamentais para sua personagem, junto com Laís Bodanzky. Em uma delas, dá uma lição sobre sexualidade e prazer feminino a um grupo de homens que trabalham no navio. A segunda é o desfecho de sua personagem, que originalmente seria presa quando chegasse a Portugal.

"Não me conformava com isso, pedi ajuda dos colegas, dos assistentes da Laís [Bodanzky], e ao longo do tempo ela foi entendendo que realmente aquela mulher, que não é uma personagem central na trama, também tem sua relevância, e que seria importante olhar para aquela história e pensar em quem assistir o filme daqui a 20 anos. A narrativa de uma mulher negra não podia acabar daquele jeito".

No próximo dia 7, quando se comemoram os 200 anos da Independência do Brasil, Isabél estará na estreia da série "Independências", dirigida por Luiz Fernando Carvalho, na TV Cultura. Serão 16 episódios, no ar toda quarta-feira, até dezembro. Nela, a atriz interpreta a Peregrina, uma personagem mística que serve como o fio condutor da trama. Filha de uma mulher escravizada, interpretada por Margareth Menezes, Peregrina criança é vivida pela atriz Alana Ayoka. Por causa de um ato violento contra a dona da fazenda, a menina é julgada e condenada à morte por enforcamento.

Então volta como uma entidade, agora na pele de Isabél, e vira uma espécie de narradora/observadora da história, que tem a capacidade de se transformar nos quatro elementos principais da natureza, a água, o fogo, o ar e a terra. "A Peregrina é baseada no conceito de tempo espiralar, da cosmologia africana", explica a atriz. "O passado, o presente e o futuro se misturam, são como camadas que existem na mesma dimensão. Isto é uma coisa muito presente nas religiões de matrizes africanas", completa Isabél.

Isabél fez testes para os dois papéis ainda em Lisboa. Mas ela vive entre Brasil e Portugal desde 2010, quando fez um intercâmbio pelo Conservatório de Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa com a Unirio (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O projeto tinha duração de seis meses. Mas ela acabou ficando por aqui.

"Escolhi vir para o Brasil porque queria um lugar em que pudesse trabalhar de imediato. Mas também por causa da relação da minha família com o país, mesmo sem ninguém nunca ter vindo para cá antes. Minha mãe é louca pelo Roberto Carlos e adora samba. Sempre ouvi Clara Nunes, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e Martinho da Vila em casa. E as novelas brasileiras, né? Eu e minhas irmãs imitávamos o sotaque brasileiro quando brincávamos em casa", conta.

A atriz portuguesa Isabél Zuaa, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Nascida em Portugal, filha de mãe imigrante angolana e pai imigrante da Guiné-Bissau, dois países africanos que foram colônias portuguesas e tiveram suas independências conquistadas nos anos 1970, Isabél diz que é uma "pretoguesa". Tem o português como idioma principal, e o crioulo de Cabo Verde e o crioulo de Guiné-Bissau como línguas secundárias.

Agora, lista também o quimbundo, língua falada no noroeste da Angola, entre seus atributos. Precisou aprender o idioma para interpretar a Peregrina da série da TV Cultura. "Moleque vem do quimbundo, assim como cafuné, bunda, cochilo, muamba, samba, jiló, quitanda", explica a atriz.

Isabél dança desde os cinco anos de idade, quando entrou num grupo chamado Prata Luar, na periferia de Lisboa, que estudava danças africanas. Quando entrou na faculdade, decidiu estudar arte dramática, mas seguiu os estudos de dança. E foi pela dança que conseguiu o primeiro trabalho no Brasil, seis meses depois de ter chegado no RJ, em 2010.

"Fiz esse intercâmbio com três amigos portugueses, e nos inscrevemos numa agência de atores logo que chegamos para começar a trabalhar. Eles foram aceitos, mas eu, não. Eu era a única negra", diz Isabél. "Depois conheci o coreógrafo Gustavo Ciríaco, da dança contemporânea carioca, e comecei a trabalhar com ele. Colaboramos entre 2010 e 2020".

Os trabalhos como atriz demoraram a aparecer, mas começaram a chegar e têm sido notados pelos júris dos festivais onde os filmes são apresentados. Isabél recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado de 2020 por "Um Animal Amarelo", de Felipe Bragança, e pelo curta-metragem "Deserto Estrangeiro", de Davi Pretto.

Ainda fez parte do elenco de "As Boas Maneiras", de Marcos Dutra e Juliana Rojas, pelo qual foi premiada no festival Zinegoak, de 2018, e no festival de Sitges, em 2017. Por "Joaquim", de Marcelo Gomes, recebeu o prêmio de melhor atriz secundária no CineEuphoria de 2018, e por "Nó do Diabo", de Ramon Porto Motta, ganhou o prêmio de melhor atriz coadjuvante no Fest Aruanda de 2017.

"Eu tenho sido muito bem acolhida no Brasil, sinto os braços abertos por eu ser de fora. Ao mesmo tempo, vejo que esses mesmos braços se fecham para as pessoas daqui que têm a mesma cor que eu", afirma Isabél. "Se eu tivesse nascido no Brasil, minha vida seria muito diferente, né?".

Mas ela confia que o país está em processo de mudança. "Venho acompanhando isso no Brasil. Quando cheguei, em 2010, era completamente diferente. E a cada ano as questões do racismo contra pessoas negras e indígenas foram sendo mais e mais faladas. E há uma busca do brasileiro pelas suas raízes, sejam de origem africana, russa, portuguesa, alemã, italiana, espanhola", diz.

A atriz portuguesa Isabél Zuaa, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

A atriz acredita que as cotas raciais são uma reparação histórica essencial, o mínimo que deve ser feito para que o Brasil chegue a um lugar de equidade social.

"É muito diferente ter sua casa invadida, ser estuprada, ter seus filhos arrancados de você e ser levada escravizada para outro país, longe de seus familiares, sem falar a língua local, do que decidir, por livre e espontânea vontade, embarcar na Itália ou na Alemanha com sua família em busca de um futuro melhor", explica. "A gente não parte dos mesmos lugares, e esse ajuste precisa ser feito".

"Tem muito trabalho para fazer", diz Isabél. "O Brasil precisa se curar das suas feridas para poder vibrar com suas vitórias. E isso tem que ser feito na prática, no dia a dia. Não adianta post de Instagram, Facebook, Twitter. Tem que ser no cotidiano, na convivência. Cada gesto, cada detalhe tem que ser reexaminado", diz.

"Mas temos tempo. A gente não tem que saber tudo e não tem que ter constrangimento por nada. Tudo bem não ter lido aquele texto, não ter visto aquele filme. Tudo bem não ter entendido as questões raciais antes", afirma. "Vai ser um aprendizado para todo mundo, e não acontece de uma vez".

Pergunto se ela é otimista em relação ao Brasil, como fez parecer nessa última frase. "Preciso ser otimista, é uma estratégia de sobrevivência", responde Isabél.

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