Falar bem do Jô Soares, morto aos 84 anos, nesta sexta-feira, é fácil. Era um gênio, e todo mundo sabe disso há décadas. Quero ver falar mal, atitude que é evitada sempre que morre uma celebridade, sobretudo as tão queridas como o Jô. Mas no passado eu já peguei bastante no pé do ator, humorista, escritor, músico e apresentador. Tipo jornalista pentelho.
Em mais de uma vez, e em mais de um texto crítico publicado neste jornal, encasquetei com o fato de Jô Soares falar demais. Em certas ocasiões, o entrevistado que ele convidara para seu programa mal tinha tempo de contar o que estava fazendo ali. Jô perguntava, respondia, discordava e concluía. O que me deixava danado da vida.
Mas agora, refletindo de manhã cedinho sobre a sua morte, relendo o que escrevi dele ou sobre ele, entendi que a implicância se devia muito mais a um rigorismo técnico de minha parte —entrevistador pergunta, entrevistado responde— do que a uma discordância verdadeira ao Jô e seu programa.
Na verdade, foi justamente o "matraquear" do Jô, como tive a petulância de escrever certa vez, que fazia muitas vezes o seu programa valer a pena.
Fosse por alguma falha da produção na hora de escolher o convidado, fosse por um momento infeliz ou um "branco" do entrevistado, o fato é que inúmeras vezes a entrevista não fluía, caía num poço de chatice e irrelevância, daquelas que fazem a gente mudar de canal ou ir dormir. Mas daí entrava em cena toda a genialidade do Jô, capturando o assunto do entrevistado e explicando, ampliando a conversa, por vezes dando uma aula sobre o assunto em questão.
A cultura do Jô era uma coisa assustadora, e inúmeras vezes ele mesmo, sua memória e seu conhecimento da vida fizeram seu programa valer a pena. Elas foram o programa e a noite terminou muito bem. Nem sempre, claro.
Já que a esta altura da vida posso me arrogar o direito de me classificar como um "velho lobo da imprensa", como diria o pessoal do "Casseta & Planeta" —outra referência histórica obrigatória—, me permito aqui uma lembrança muito antiga.
Fui incumbido de entrevistar o Jô sobre um seu novo show, nos inícios da década de 1980. Mas a agenda do artista não tinha espaço para um repórter iniciante, embora meu jornal, o Estadão, fosse o Estadão. Daí que a produção do espetáculo fez que fez, deu um jeito e me colocou na coxia do teatro da avenida Brigadeiro Luiz Antonio para, como desse, eu falasse com o Jô para minha reportagem.
E foi uma maravilha. Atrás das cortinas, eu ficava a posto, e a cada vez que Jô saía de cena para trocar de roupa e encarar outro de seus fantásticos personagens, ele falava alguma coisa comigo. Respondia a perguntas sobre arte, política, a vida em geral. Ria, contava piada, cutucava outros artistas, seus fãs. Tudo pronta e rapidamente, como se aquilo fizesse parte do show. Foi uma das reportagens mais legais que fiz, graças à generosidade deste artista inigualável.
Um episódio mais contemporâneo relativo ao Jô me causa muito orgulho. Foi um texto publicado neste jornal em que defendi o artista e me solidarizei com ele por causa de uma agressão obtusa e ofensiva que recebera, um xingamento pichado no asfalto em frente ao seu prédio. Coisa pesada, desejando sua morte, numa clara antecipação dos tempos tenebrosos que hoje vivemos. Jô tivera a ousadia de entrevistar a então presidente Dilma Rousseff, imaginem!
Obviamente, em contraponto ao ataque, ele recebeu todo tipo de apoio, mas não só. Outras ofensas pipocaram e até eu recebi uma série de xingamentos. O mais triste e ofensivo deles por parte de um então conhecido "marchand" (na verdade um atravessador do trabalho alheio), que, credo, propôs meu linchamento. À época ele tinha alguma importância, mas hoje está recolhido à sua silenciosa insignificância.
Assim como este sujeito que merece o esquecimento, os beócios que nos afetam cotidianamente com suas estultices jamais entenderam, entenderão ou entenderiam o tamanho de Jô Soares, tampouco a sua importância para a história do humor em particular e da televisão brasileira em geral.
Detalhes sobre esta trajetória estão fartamente documentados na monumental biografia escrita em parceria com Matinas Suzuki Júnior —aliás, outro profissional cuja importância para a história recente da imprensa brasileira ainda está para ser devidamente dimensionada.
História linda, a deste José Eugênio, não?
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