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Virilidade é coisa de mulher, segundo Xico Sá e Gregorio Duvivier

Em 'A Falta' e 'Sonetos de Amor e Sacanagem', o que atrai é não só lirismo, mas beleza e rigor na forma

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Fui ler o romance "A Falta", de Xico Sá, e "Sonetos de Amor e Sacanagem", de Gregorio Duvivier, em busca de texto de homem —a partir dos quais pudesse extravasar uma raiva de momento, nos quais reencontrasse escombros de guerra, morte, mundos destruídos (ao modo de Hemingway), desaforos machos (ao estilo Bukowski, o carteiro, que traduzi para o português tempos atrás).

Mas haverá diferença notável entre texto de homem e texto de mulher? Afinal, o caráter imutável do sexo já foi incontestavelmente derrubado. E mesmo a distinção entre sexo e gênero revela-se nula, como aponta Judith Butler.

Ilustração da capa do livro 'A Falta', de Xico Sá - Divulgação

Ainda assim, quem, senão um homem (Sá), escreveria um romance cujo protagonista é um goleiro de futebol? E quem, senão um homem (Duvivier), criaria o título "Sonetos de Amor e Sacanagem"? Contudo, e por óbvio, qualquer mulher pode também abordar isso sem hesitação.

No texto de Xico Sá —escritor, jornalista, cronista esportivo— já me atraía a identificação política de esquerda. Fui buscar em "A Falta", o que já tínhamos conversado também ser um traço em comum na nossa biografia (ele do Ceará, eu de Pernambuco): a experiência de uma infância sem grandes manifestações físicas de afeto, sem beijos nem abraços, no universo de famílias nordestinas criadas na rudeza da terra seca.

Na poesia de Gregorio Duvivier, o "boca do inferno" da crítica satírica atual, humorista, roteirista, artista multimídia tão inteligente e certeiro no texto, fui buscar o estilo incisivo do outro Gregório (o de Matos), o revolucionário e escandaloso poeta barroco. Encontrei semelhanças diversas. Mas não a pornografia brutal que eu esperava, o erotismo falocêntrico predominante na poesia erótica em geral.

Não havia nada disso. No romance de Xico Sá, o goleiro Yuri Cantagalo vai se apresentando em primeira pessoa ao longo dos capítulos curtos, ou melhor, do minuto a minuto no decorrer de uma partida de futebol, recurso literário que veste com justeza perfeita o tema.

Já não bastasse ser o esporte em si um meio de sublimação da violência, eis que o próprio Cantagalo reconhece seu lugar de impotência e passividade no time: afinal, na simbologia do futebol, o goleiro é quem cuida da casa e ocupa o lugar passivo da mulher que será penetrada, violada e coisa e tal.

"Fosse um atacante, talvez me vingasse do seu desprezo estufando as redes do adversário com um gol de placa. Não tem imagem mais vingativa e erótica [...]", diz Cantagalo.

O desprezo é de Sevilhana, uma mulher que o abandonou. Cantagalo segue, à batida do cronômetro do jogo, narrando a perda desse amor, suas desventuras vida afora e seu ressentimento com o país natal sempre injusto, para onde volta, já maduro, de atuações no exterior, e onde não mais se reconhece.

Nos 90 minutos dessa voz que também faz as vezes de locutor de jogo, só encontrei lirismo, beleza, acerto do enredo à forma. Até o último minuto da narrativa, de dureza mesmo vi somente os arrecifes da praia mole de Boa Viagem (onde Sevilhana gostava de nadar) e senti o sal no olho, uma saudade, uma tremenda vontade de chorar. Livro bonito, fácil de ler, este "A Falta" —tudo o que eu não queria!

Voltei-me para Gregorio Duvivier, mas de cara espantei-me com a disciplina da forma. A prisão do soneto, a métrica, a rima, não faria contida a expressão, a explosão, a virulência que eu buscava? Em vez de ataque, defesa; em vez da brutalidade da caça e da espingarda de Hemingway, um homem apaixonado (no "Soneto do Desarrependimento"), o crítico de si mesmo ("Soneto pra Sá de Miranda").

Só encontrei ali graça, riso, leveza e novamente beleza, a despeito do desencanto, da crítica gregoriana ácida a nossos tempos infernais, a nossa condição humana tão vulgar e inútil ("Soneto Gasoso" e "Soneto Inútil"): "Até o dia útil é inútil/ nada nunca serviu pra merda alguma".

Extravasei minha raiva em outro lugar. A moral da história é esta: minha busca nos textos de Xico Sá e Gregorio Duvivier provou que não há texto de homem, que virilidade é coisa de mulher —de goleiro, de poeta, de mim mesma.

A Falta

  • Preço R$ 48 (157 págs.)
  • Autoria Xico Sá
  • Editora Tusquets

Sonetos de Amor e Sacanagem

  • Preço R$ 39,90 (112 págs.); R$ 27,90 (ebook)
  • Autoria Gregorio Duvivier
  • Editora Companhia das Letras
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