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'Humanos Exemplares' une passado e futuro e embaralha o relógio

Livro da autora Juliana Leite sugere que casal protagonista testemunhou tortura durante os anos da ditadura militar

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Luís Augusto Fischer

Humanos Exemplares

  • Preço R$ 69,90 (248 págs); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor Juliana Leite
  • Editora Companhia das Letras

As sucessivas gerações enfrentam o passado de distintos modos. Os que viveram uma experiência diretamente preservam detalhes sólidos que, para os que vêm depois, podem perder sentido; os que vêm depois dispõem da vantagem de conhecer o desenho amplo do fenômeno, ainda que à custa daqueles pequenos detalhes.

O romance "Humanos Exemplares" —nome vago o suficiente para deixar escapar qualquer significado relevante— pode ser lido, num primeiro plano, segundo essa regra.

Ancorado num presente que, se sugere, é o tempo da pandemia e do isolamento, seu centro de interesse se desloca para a época da ditadura.

Retrato de Juliana Leite, autora de Humanos Exemplares
Retrato de Juliana Leite, autora de 'Humanos Exemplares' - Ana Alexandrino/Divulgação


Seguindo as indicações realistas do relato, deduzimos que o casal protagonista, de astral meio hippie, trabalhava numa escola quando começa a haver censura de ideias e desprezo pela solidariedade. Estariam em 1964? Ou 1968? Mas o casal já andava de Chevette —e o leitor que estava vivo então lembrará que tal carro não existia em 1968, muito menos em 1964.

Esse detalhe anacrônico (não o único) pode ser secundário para a leitura do romance como um todo? Pode. Ocorre que todos os fundamentos do relato de algum modo radicam nesse tempo do passado, convocam a imaginação do leitor para o tempo em que Natália e Vicente, o casal, viveu, criou a filha e testemunhou tortura e perseguições —nada dito com clareza, apenas insinuado.


A leitura poderá abandonar essa dimensão documental do passado para se fixar no presente do enredo —Natália, viúva e com uma filha morando "no oceano superior" (expressão reiterada dezenas de vezes), completa cem anos. É o que está escrito. Então ela terá nascido por volta de 1922. Mas faz sentido a cronologia?

Os cem anos serão assim uma alegoria, o Chevette será outra, a sugestão de pandemia idem. Senão, como encarar a rotina do casal, que levava para a escola "panelas e mais panelas" diárias de macarrão com molho no banco de trás do dito Chevette? Um dia, numa freada mais forte, um tanto do molho entornou nas pernas da filha —e um policial tomou o fato como suspeito, porque dentro daquela panela poderia estar sendo conduzido algo proibido!

O romance, concluímos então, exige ser lido longe do sentido literal, representativo, documental. Seria talvez uma fábula, como a história do mendigo assobiador, a da barbeira inepta de Petrópolis, a do turno obrigatório na loja de biscoitos da amiga. Aspecto que se reforça com um ar condescendente na voz narrativa —Natália quase sempre é "essa velha" ou "uma velha", assim como a filha é sempre "a filha que mora longe".


Exemplo, em abertura de capítulo, quase no final do livro —"quando voltou da visita à filha no oceano superior, dois dias depois do previsto porque o avião quebrou e teve de ir para a oficina dos aviões, a velha finalmente chegou ao apartamento". Oficina de aviões? Mas para quem está sendo contada a história? Seria para uma criança?

Há méritos, porém. Um deles pode ser justamente a forma relativamente distensa do romance, cujos capítulos começam sempre numa cena atual de solidão de "uma velha", Natália, e depois
mergulha num flashback, mais ou menos engenhoso e em geral dispensável para o desenvolvimento da trama. O leitor interessado em passatempo ganhará com o recurso.

Há o mérito maior ainda de abordar o tema do envelhecimento, em curso acelerado "nesta velha". Entra em cena a perda de autonomia, a distância da filha, a solidão pela perda dos contemporâneos, e do lado mais jovem a desolada sensação de não poder acompanhar a vida dos muito velhos na mesma medida em que estes cuidaram dos filhos. Tudo triste e com um teor de verdade humana forte, documentando a experiência-chave de nosso tempo.

Mas o tom geral do romance, indefinido entre a temerosa alegoria e o hesitante realismo, um bloqueando o outro, é mesmo adequado? Seria mesmo necessária essa hesitação para dar a ver a experiência nefasta da ditadura militar de 1964 a 1985 e convocar o leitor de 2022?

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