Independência ganha nova interpretação na mostra 'Atos de Revolta', no Rio

Exposição discute, com a arte, as narrativas do passado e do presente, propondo novas reflexões sobre a história

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Rio de Janeiro

Quatro caibros de eucalipto com mais de três metros de altura, que servem à arquitetura, mas também ao pelourinho onde os negros escravizados eram amarrados e chicoteados, sustentam uma versão da bandeira nacional numa cor que remete à lama, cercada por outras bandeiras menores, dispostas no chão.

A obra de Luana Vitra, remontada para a mostra "Atos de Revolta – Outros Imaginários sobre Independência", recém-inaugurada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, simboliza a fragilidade sobre a qual repousa o símbolo da nação independente, cuja história é atravessada pela dependência econômica, a sociedade escravocrata e uma série de revoltas reprimidas, bem como os personagens dessa trama.

A obra da artista Luana Vitra, criada para a mostra 'Atos da Revolta'
A obra da artista Luana Vitra, criada para a mostra 'Atos de Revolta' - Divulgação

São justamente essas revoltas e personagens, postos em tensão com a história, que ocupam o espaço do MAM. "Mais que falar sobre Independência, a gente foi olhar para os acontecimentos que a antecederam e sucederam, 50 anos antes e 50 anos depois", afirma Thiago de Paula Souza, um dos organizadores da exposição. "Queríamos escapar um pouco da Inconfidência Mineira [de 1789 a 1792]. Era muito elitista. A abolição nem era discutida."

Movimentos como a República de Pernambuco, de 1817, de caráter liberal, também são colocados de escanteio, enquanto a mostra destaca outras como a Revolta da Praia de Sangue, de 1790, liderada por povo Wapichana, de Roraima, representada em instalação do artista Gustavo Caboco Wapichana, criada especialmente para a mostra junto à comunidade local.

A maior parte da mostra é ocupada pelas revoltas e personagens da Bahia, onde a Independência ainda não era consenso, ao contrário do que acontecia, por exemplo, no Rio de Janeiro. Por isso as revoltas.

"Nenhum dos trabalhos é sobre as revoltas", afirma Souza, entretanto. O que se busca, ele diz, é usar a arte para discutir as narrativas do passado e do presente, propondo novas reflexões sobre a história e o próprio fazer artístico. Nisso se inserem, por exemplo, as obras da artista Marcela Cantuária, criadas para a exposição.

Em "Maria Felipa e a Fera do Mar", Cantuária cria uma possível figura imagética para Maria Felipa de Oliveira, marisqueira ex-escravizada que se tornou uma das líderes da revolta independentista da Bahia. Personagem sobre a qual, infelizmente, há poucas informações históricas. "Não sabemos o rosto dela. A pintura seria uma possível versão", diz o curador.

Outra figura de destaque na historiografia e na mítica da independência da Bahia de 1823 é Maria Quitéria, que teria se vestido de homem para lutar com as forças do Exército. Na obra, porém, ela é retratada em sua feminilidade —e com o quepe.

Obra do artista Tiago Sant’Ana, "Museu da História Bahiense" traz uma exposição dentro da exposição ao recriar artefatos históricos, como a partitura do hino ao 2 de julho, dia da "independência" da Bahia, propositadamente envelhecida, que terá destaque durante a mostra, exposta dentro de redomas e observada pela bandeira da Revolta dos Búzios, no fim do século 18.

Segundo Souza, o curador, a grande diferença entre a Independência brasileira e a americana é que a última trouxe em seu bojo a abolição. No entanto, 89 anos separam a declaração da Independência de 1776 e a famosa 13ª emenda de 1865, que deu como extinta a escravidão após 500 mil mortos pela Guerra Civil. Os direitos civis só seriam reconhecidos um século depois, após um estado de insurreição social.

Uma barricada em vermelho, simbolizando o sangue derramado dos escravizados e dos povos originários, divide o espaço expositivo. Sobre ela, repousam peças do período colonial que têm por intuito fazer o público se confrontar com o passado.

"São parte de uma arquitetura colonial, desse momento histórico. E, ao mesmo tempo, falam dessa estrutura colonial no Brasil", afirma Pablo Lafuente, da direção artística do MAM e um dos curadores da mostra. "Você não pode passar por ele [o passado] simplesmente."

As peças são de acervos do Museu Nacional, do Convento Santo Antônio e do Museu da Inconfidência, de Ouro Preto, em Minas Gerais. Outro destaque é a obra da dupla Gisela Vasconcelos e Pedro Victor Brandão sobre a Cabanagem. Os artistas criaram, a partir de uma base de metadados, imagens e personagens da revolta paraense de 1835 em três peças diferentes.

Uma pesquisa também foi feita com base no acervo do jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto. Um dos principais nomes do jornalismo brasileiro, o repórter editou por décadas o Jornal Pessoal, principal fonte sobre os crimes cometidos contra a Amazônia brasileira.

O jornal, sim, deixou de circular, em 2018, após anos e anos de pressões e ameaças que levaram seu criador, repórter e editor ao limite. Mas volta a circular na mostra com uma edição especial sobre a Cabanagem, com distribuição ao público.

Atos de Revolta: Outros Imaginários sobre Independência

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