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Annie Ernaux, vencedora do Nobel, afunda na sua desgraça em 'A Vergonha'

Autora surpreende pela intensidade com que narra seus dramas em livro que fica entre o ensaio e a catalogação de dados

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Ligia Gonçalves Diniz

A Vergonha

  • Preço R$54,90 (88 págs.)
  • Autor Annie Ernaux
  • Editora Fósforo
  • Tradução Marília García

Poucos parágrafos após descrever o evento em torno do qual constrói "A Vergonha", Annie Ernaux, que acaba de vencer o Nobel de Literatura, escreve que todo relato "normaliza o ato, inclusive o mais dramático deles". É uma armadilha: as pouco mais de 70 páginas do livro não chegam perto de tornar o episódio trivial.

"Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde", escreve a autora na abertura da narrativa. A partir daí, ela se volta à sua vida familiar e escolar no interior da Normandia, a fim de arregimentar informações que lhe permitam reconhecer a si própria na menina de 12 anos que vê seu mundo "afundar na desgraça".

Retrato da escritora Annie Ernaux, de "A Vergonha", em 2001
Retrato da escritora Annie Ernaux, de "A Vergonha", em 2001 - Leemage/AFP

Publicada na França em 1997 e trazida agora ao Brasil na ótima tradução de Marília Garcia, "A Vergonha", em sua linguagem sem concessões ao artifício, não surpreenderá os leitores familiarizados com a obra autobiográfica de Ernaux. Transitando entre o ensaio e uma espécie de catalogação de dados, o livro surpreende, porém, pela intensidade do sentimento indizível que, paradoxalmente, a autora faz transparecer.

Desde "O Lugar", de 1983, Ernaux remexe as estruturas do literário ao reelaborar as próprias recordações, escolhendo não a ficcionalização da memória —como muitos autores contemporâneos—, mas a radicalização da distância entre escritor e seu eu rememorado. Reconhecendo a discrepância, Ernaux trata a memória como documento, analisando materiais do passado —fotografias, jornais, cartas— e procurando fazer o que chama de uma etnografia de si mesma.

Em "A Vergonha", isso significa descrever minuciosamente as regras explícitas ou não da escola religiosa particular em que estudava, bem como o ambiente doméstico que compartilhava com os pais, também marcado pela prática católica.

A eficácia do procedimento, no entanto, é contestado pela própria voz narrativa, que insistentemente afirma a dificuldade de fazer coincidir o eu que escreve, lembra e observa com aquele que viveu os eventos. "Certeza de que ‘sou eu’; impossibilidade de me reconhecer, ‘não sou eu’", escreve ela a respeito de uma antiga fotografia sua.

Esse incômodo com o desencontro entre as duas —a menina de 12 anos e a autora de quase 60— é o principal recurso narrativo de "A Vergonha". Se elas só confluem no "peso" e no "aniquilamento" ainda sentidos e intraduzíveis, a tarefa é buscar o que as diferencia e o que as une.

Assim, embora a parte central do livro, "etnográfica", seja por vezes enfadonhamente objetiva, ela é condição necessária para o baque da seção final, em que vem ao primeiro plano a sensação da quebra insuperável provocada pelo ato do pai e suas consequências no imaginário da adolescente e da adulta.

A vergonha promove um descolamento, que faz com que a Annie de 12 anos pela primeira vez comece a se enxergar de fora e, de modo ainda mais dilacerante, a observar sua vida doméstica com um olhar desfamiliarizado.

"Eu me tornei uma pessoa que não merecia a escola particular, sua excelência e perfeição", escreve Ernaux. As páginas que relatam os dias e meses após o episódio de violência são as mais doloridas e impressionantes, porque nelas a autora penetra o território do exame impiedoso dos pais.

Essa apreciação crítica do casal de donos de uma venda é permeada por um olhar atento à diferença entre as classes sociais, que vai além da questão econômica, informando gostos e hábitos.

Na passagem mais pungente da narrativa, Ernaux conta a excursão que a adolescente e seu pai fizeram à cidade de Lourdes, na qual os dois eram os mais pobres e com menor capital cultural. Mesmo descrevendo os eventos com seu estilo nada dramático, Ernaux faz partir nosso coração.

"O pior da vergonha é que achamos que somos os únicos a senti-la", escreve a autora. Não é, e há algo de cruel em lançar a vergonha dela no mundo, por meio da publicação do livro, que atinge e dispara a vergonha pessoal de cada leitor, sem consolá-lo pelo compartilhamento da experiência. A vergonha é, afinal, um dos poucos sentimentos, quiçá o único, que só faz supurar a cada vez que é posto em palavras.

Ligia Gonçalves Diniz é doutora em literatura pela UnB, professora na UFMG e autora de "Imaginação como Presença: O Corpo e seus Afetos na Experiência Literária"  

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