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Como Wall Street invadiu o negócio da música e exaltou o valor das canções pop

Mesmo com as condições econômicas menos favoráveis, os gigantes de NY ainda competem por composições de sucesso

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Anna Nicolaou Kaye Wiggins
Nova York e Londres | Financial Times

Para Barry Massarsky, cuja especialidade é a avaliação do valor de canções de estrelas pop para gravadoras, a transformação da música em parte do mercado financeiro vem sendo um ótimo negócio.

"Estamos muito ocupados. Temos um número de contratos inacreditável, com muitos parceiros diferentes. Novos fundos nos procuram uma ou duas vezes por semana", disse Massarsky ao Financial Times em julho. "Meu sócio brinca que temos de manter a porta trancada. É uma loucura, um mercado cintilante".

Pessoas que trabalharam com Massarsky o descrevem como um eterno otimista —um ex-cliente o comparou ao mentor do filme "Jerry Maguire", um sujeito que declara que acorda a cada manhã, bate palmas e exclama que o dia vai ser ótimo.

O ator Tom em cena do filme 'Jerry Maguire'
O ator Tom em cena do filme 'Jerry Maguire' - Reuters

Mas, até recentemente, o executivo, formado na escola de administração de empresas da Universidade Cornell, em Nova York, havia trabalhado por mais de uma década para um setor que vinha sofrendo problemas crônicos.

Como economista, ele calculava o valor dos royalties de música para gravadoras, editoras e artistas. Quando a pirataria online desordenou o setor, nos anos 2000, Massarsky ganhava seu sustento calculando, por exemplo, quanto dinheiro Bob Dylan poderia perder devido à violação de seus direitos autorais por um site chamado Mp3.com.

No entanto, nos últimos anos o streaming de música revigorou o faturamento do setor, e os bancos centrais reduziram as taxas de juros para o patamar mais baixo da história, levando os investidores a saírem em busca de novas fontes de retorno.

O resultado foi que os maiores investidores do mundo aplicaram bilhões num setor até então pacato, e os pagamentos de royalties musicais foram transformados em uma categoria de ativos reconhecida. Massarsky e sua pequena equipe se tornaram os feiticeiros financeiros por trás de bilhões de dólares em transações de alto perfil.

Hoje, executivos, advogados e agentes do setor musical dizem que o influxo de dinheiro de Wall Street não tem precedentes. Depois de uma série de investimentos no setor, o grupo Blackstone agora ganha dinheiro toda vez que "SexyBack", de Justin Timberlake, toca num shopping center. O grupo Apollo fatura a cada vez que "Despacito", de Luis Fonsi, explode dos alto-falantes de uma casa noturna.

O pioneiro do fenômeno foi um fundo de investimento londrino chamado Hipgnosis, cujo nome vem de um grupo de arte que projetou capas de álbuns para o Pink Floyd e outras bandas.

Em 2018, Merck Mercuriadis, um sujeito obcecado por música que já foi empresário de Elton John, criou o fundo como um veículo para comprar canções, oferecendo os títulos adquiridos a investidores institucionais como uma forma de obter retornos confiáveis, semelhantes aos dos títulos de dívida.

Em uma era de alta nas taxas de juros, a categoria de ativos nascente está enfrentando seu primeiro teste real. "O que você está adquirindo é um fluxo de caixa futuro antecipado. Se as taxas subirem, você desconta esses fluxos de caixa a esses níveis mais altos", diz Dan Ivascyn, diretor de investimentos da administradora de fundos Pimco.

"A propriedade intelectual musical, como outros mercados privados, é uma área onde ainda não vimos os mercados reagirem plenamente às realidades do que estamos vendo nos mercados públicos. Veremos uma queda no volume de transações."

Sob essas condições, o papel de Massarsky será crucial. Se ele começar a usar taxas de juros mais altas como parte de seus cálculos —refletindo o aumento dos juros do mundo real—, a avaliação de mercado para dezenas de milhares de canções cairia, o que poderia causar estragos para os investidores que contraíram dívidas para financiar suas aquisições. Até agora, ele vem resistindo a fazer isso.

"Todo mundo sabe que o resultado da luta foi arranjado. Os pobres ficam pobres, os ricos ficam ricos", cantou Leonard Cohen em "Everybody Knows", sucesso de 1988.

O grupo Blackstone, gigante do capital privado cujo presidente-executivo, Stephen Schwarzman, ganhou mais de US$ 1 bilhão no ano passado, não só possui direitos sobre essa canção como a incluiu em um pacote de centenas de músicas e securitizou esse pacote como garantia contra centenas de milhões de dólares de dívidas.

A história de como isso aconteceu acompanha a saga do capitalismo depois da crise financeira. Quando Mercuriadis fundou o Hipgnosis, em 2018, as taxas de juros estavam baixas e o mercado de ações passava por seu nono ano de alta histórica.

Até recentemente, os valores negociados eram baixos; em 2019, por exemplo, apenas US$ 368 milhões em aquisições de direitos musicais foram anunciados publicamente, de acordo com a Midia Research. Mas, à medida que os investidores faziam tentativas criativas de gerar retornos mais altos do que as míseras somas oferecidas por títulos do governo, surgiram argumentos em favor de investir em canções.

As negociações envolvendo catálogos musicais dispararam para US$ 1,9 bilhão, cerca de R$ 10,2 bilhões, em 2020, e em seguida para US$ 5,3 bilhões, ou R$ 28,6 bilhões, no ano passado, ainda de acordo com a Midia Research.

O raciocínio era o seguinte —ao recolher uma ampla gama de canções e juntar todas elas num único fundo, os royalties sobre elas, pagos aos proprietários dos direitos autorais quando uma música é tocada, poderiam ser agregados em forma de um fluxo de caixa constante, a partir do qual os dividendos seriam pagos. Grandes investidores, como a Pimco e o Apollo, foram atraídos a investir em royalties musicais pela primeira vez.

Em meio à corrida por música, grupos como o Investec Wealth & Investment, Aviva Investors e a CCLA, que administra o dinheiro da Igreja Anglicana, entregaram seu dinheiro ao Hipgnosis Songs Fund, de Mercuriadis, um fundo de investimento com cotas negociadas na Bolsa de Londres, que investiu esses recursos na aquisição de direitos autorais sobre mais de 65 mil canções.

"Achamos que esse investimento vai gerar retornos acima do normal. É um instrumento menos conhecido [do que outras categorias de ativos] e acreditamos ter chegado cedo ao mercado", diz Paul Flood, administrador de portfólio da Newton Investment Management, que de acordo com o mais recente balanço anual do HSF é o maior cotista do fundo, com uma participação de 10%.

Mercuriadis contratou Massarsky como profissional terceirizado para calcular o "valor patrimonial líquido" de sua carteira de canções, com o objetivo de manter os cotistas informados. De acordo com os cálculos de Massarsky, o Hipgnosis parecia estar fazendo apostas profeticamente bem-sucedidas.

Massarsky calculou que o valor do portfólio, ao qual novas canções eram constantemente acrescentadas, vinha subindo a cada seis meses. De £ 128 milhões, em março de 2019, para US$ 2,7 bilhões, ou R$ 16,2 bilhões, no final de março. (A moeda em que os resultados do Hipgnosis são apresentados mudou da libra para o dólar, nesse meio-tempo.)

Enquanto isso, Mercuriadis selava sua reputação de amigo das estrelas, se posicionando como uma ponte entre investidores caretas e músicos erráticos. Ele caprichava na retórica, em entrevistas, declarando que canções eram "melhores do que ouro ou petróleo", como investimento.

À medida que seu fundo adquiria mais música, passou a reportar receitas sempre crescentes –elas subiram de £ 7,2 milhões de libras em 2019 a US$ 168,3 milhões em março deste ano—, e os financistas aderiram. Quatro dos seis bancos que incluem as cotas do fundo em suas análises —JPMorgan, Royal Bank of Canada, Investec e Liberum— recomendam compra.

Mas o ritmo das aquisições mascarava o desempenho subjacente dos catálogos. A receita formal de royalties que as canções geram –um indicador que exclui o efeito de novas aquisições— vem caindo há pelo menos dois anos, desde que o número foi divulgado pela primeira vez.

Até o final de agosto do ano passado, o fundo de Mercuriadis negociado em Londres tinha investido todo o dinheiro que arrecadou para adquirir catálogos de canções. O fundo não pode levantar mais capital sem diluir o valor das cotas –que estão sendo negociadas a valores muito inferiores aos que o Hipgnosis Songs Fund deriva dos números de Massarsky.

Porque esse fundo de capital aberto está na prática congelado, Mercuriadis agora depende do Blackstone para financiar suas aquisições.

No ano passado, o Blackstone adquiriu a Hipgnosis Song Management, o HSM, a empresa de administração de fundos de Mercuriadis, que assessora o fundo negociado em bolsa. O Blackstone também criou um fundo separado com capital de US$ 1 bilhão, Hipgnosis Songs Capital, o HSC, que usou para adquirir ainda mais canções, ainda com a assessoria da HSM. Mercuriadis usou parte desse dinheiro para comprar os catálogos de Cohen, Timberlake e outros para o fundo do Blackstone.

Em agosto, o Hipgnosis Songs Capital emitiu US$ 222 milhões em títulos garantidos por ativos, ou seja, papéis de dívida que utilizam os direitos autorais das canções como garantia, para ajudar a financiar suas aquisições.

A Chord Music Partners, apoiada pelo KKR, um grupo de capital privado que concorre com o Blackstone, promoveu uma securitização semelhante em janeiro, vinculada a cerca de 62 mil canções. Mas o HSC terá de pagar mais de 6% ao ano por sua dívida, em comparação com os pouco menos de 4% pagos pela Chord, em um sinal de como a alta nas taxas de juros já está corroendo o potencial de retorno.

O Blackstone agora está impondo uma disciplina financeira mais rigorosa, usando análise de dados e planilhas para avaliar retornos potenciais, disseram duas pessoas informadas sobre o assunto.

"Muitas das transações realizadas a preços totalmente irracionais 12 meses atrás, todo aquele comportamento irracional, estão fora do mercado", diz Hartwig Masuch, presidente-executivo do grupo musical BMG, que formou uma parceria com o KKR para adquirir US$ 1 bilhão em direitos musicais. "Começa a surgir algum reconhecimento, entre aqueles que apoiam esses veículos financeiros, de que não basta poder gastar dinheiro. A aquisição também precisa fazer sentido."

Uma cesta de bens

Mesmo com as condições econômicas cada vez menos favoráveis, os gigantes de Wall Street ainda competem por canções de sucesso, contra os compradores tradicionais —as grandes gravadoras– e contra fundos especializados menores.

O Blackstone dobrou seu investimento na Hipgnosis. O KKR voltou a entrar no negócio da música depois de uma década, com um novo fundo de US$ 1 bilhão. O Carlyle, depois de ajudar a financiar a aquisição, por US$ 300 milhões, da antiga gravadora de Taylor Swift, em 2019, reservou US$ 500 milhões para adquirir canções —mesmo depois de ter sido arrastada a uma disputa amarga, que levou Swift a decidir regravar todo seu catálogo.

"Se você estiver pensando em investir em muitas outras categorias de ativos, no momento, o panorama é bastante traiçoeiro. Há inflação, há riscos de cadeia de suprimento, há risco geopolítico", diz um executivo importante de um grande grupo de capital privado. "A música é relativamente imune a essas coisas."

A empresa de consultoria de Massarsky, que tinha cinco funcionários e foi vendida a uma companhia de auditoria e consultoria maior, a Citrin Cooperman, em janeiro, está envolvida em cerca de três quartos dos negócios nesse mercado.

O veículo de investimento cotado em bolsa do Hipgnosis usa os cálculos de valor patrimonial de Massarsky como indicadores de sucesso e também como determinantes para sua captação. O fundo tem autorização para tomar emprestado até 30% do valor patrimonial derivado dos números de Massarsky.

Mark Mulligan, analista de música da Midia Research, diz que essa estrutura pode criar um "círculo virtuoso", já que o catálogo do Hipgnosis é reavaliado por Massarsky a cada seis meses.

"O Hipgnosis vai ao mercado e diz que esse é o aumento de valor de nosso patrimônio", afirma Mulligan. "Eles não falam do aumento de faturamento, mas do aumento de valor. Muito do que impulsiona o valor é simplesmente o quanto as pessoas estão dispostas a pagar. E o valor que elas estão dispostas a pagar é moldado pelas avaliações. Funciona como uma câmara de eco."

O responsável por uma das grandes empresas compradoras de música diz que Massarsky "valida muitas avaliações que não aceitaríamos como preço". "Lembra aquele problema das agências de classificação de crédito em 2007?", diz Michael Sukin, um advogado do setor musical que contratou Massarsky como economista na American Society of Composers, Authors and Publishers [uma sociedade de arrecadação de direitos autorais], na década de 1980, em uma referência à crise das hipotecas "subprime".

O Massarsky Group afirma que seu trabalho é "estritamente independente" e que a empresa é "remunerada exclusivamente por nossa experiência". "Nós não validamos avaliações, isso simplesmente não faz parte do que fazemos. Realizamos avaliações independentes que refletem, da melhor maneira possível, aquilo com que o mercado poderia arcar."

O modelo de fundo de investimento, que beneficiou a Hipgnosis em anos anteriores, se tornou um problema para a empresa nos últimos meses. Cada vez mais, suas cotas negociadas no mercado aberto estão trocando de mãos por valores que não se alinham às estimativas de Massarsky sobre seu valor –a defasagem é de cerca de 30%.

O cálculo do Massarsky Group sobre o valor patrimonial líquido de um catálogo de canções é determinado usando uma taxa de desconto —uma taxa de juros para ajudar a calcular o valor atual de fluxos de caixa futuros. Quanto maior a taxa de desconto, menor o valor atual, e vice-versa. Mesmo que o Federal Reserve, o Fed, o banco central dos Estados Unidos, tenha aumentado agressivamente as taxas de juros este ano, o grupo insiste que não precisa elevar sua taxa de desconto.

Nari Matsuura, sócia da Citrin Cooperman e membro da equipe de Massarsky, diz que "não podemos mudar nossa taxa de desconto de semana para semana, seria irresponsável". Uma taxa de desconto adequada leva em conta tanto o presente quanto o futuro; nossa taxa de desconto atual é calculada dessa maneira, e é por isso que achamos que é apropriada, por enquanto."

Se o grupo reduzisse suas avaliações, o Hipgnosis Songs Fund seria impedido de captar muito mais recursos. O fundo já tomou US$ 600 milhões emprestados, o equivalente a cerca de 27% de seu valor de capital operacional de US$ 2,2 bilhões, o que fica bem próximo de seu limite máximo de 30%.

Uma grande redução, de US$ 2,2 bilhões para US$1,5 bilhão, correria o risco de pôr o fundo em situação de violação dos termos dos empréstimos que obteve do banco JP Morgan —e poderia forçar a instituição a amortizar parte de suas dívidas.

Os executivos do Hipgnosis, falando em off, alardeiam o envolvimento do Blackstone como um fator tranquilizador para os cotistas do fundo original negociado em bolsa, dizendo que, se o preço das cotas cair, o grupo de capital privado de Wall Street poderia intervir e comprar seu catálogo, o que de certa forma estabelece um piso de valor. Mas Flood, da Newton, teme dar ao Blackstone um caminho muito fácil para adquirir os catálogos a baixo preço.

"Se o Blackstone fizesse uma oferta ousada, diríamos ao conselho que conversasse com todas as gravadoras do planeta e com todas as outras empresas de capital privado", para obter o preço mais alto possível pela música, ele diz.

Quando a música para

Um choque cultural mais amplo está sendo sentido na indústria musical agora que Wall Street ingressou num setor que estava acostumado a operar de forma mais informal, com transações sujeitas aos caprichos de pessoas com personalidades expansivas e ao efeito de relacionamentos pessoais.

Transformar canções em ativos financeiros levou a algumas formas incomuns de análise financeira, como um relatório da Kroll que no mês passado informou aos investidores em títulos que uma cover de "Hallelujah", de Cohen, cantada pelo grupo vocal americano Pentatonix, atrai três vezes mais execuções no Spotify do que a gravação original da canção. E também supera a cover gravada por Jeff Buckley.

Somadas, dez versões diferentes da canção "Hallelujah" representam quase 13% dos royalties do catálogo do Blackstone.

Receber pagamentos de royalty –a corrente sanguínea dessas transações— pode ser um processo complicado. O presidente-executivo de uma gravadora diz que, muitas vezes, um dos obstáculos mais difíceis à compra do catálogo de um artista é que o músico não consegue encontrar a cópia máster física da gravação.

Os executivos do Blackstone acreditam que podem extrair mais dinheiro da música por meio de uma gestão mais sofisticada, dizem pessoas informadas sobre o assunto. A lógica é que as canções podem ser administradas de forma semelhante a outros ativos —os retornos podem ser estimulados, por exemplo, se cineastas forem convencidos a usar canções de um determinado catálogo em seus filmes, ou se for desenvolvido um sistema mais rápido e eficiente de recebimento de royalties.

A questão agora é se os financistas conseguirão encontrar uma forma de lucrar apesar da inflação crescente e das taxas de juros mais altas —e o que acontecerá com o dinheiro dos investidores se surgir a descoberta de que isso não é possível.

Os executivos de capital privado costumam citar o banco Goldman Sachs para validar seus investimentos musicais e definem o relatório anual do banco sobre o segmento de música como a bíblia do mercado. O Goldman Sachs prevê que a receita com música quase dobrará, para US$ 153 bilhões, até 2030, já que a receita do streaming está crescendo em média 12% ao ano.

Mas os números recentes contam uma história diferente. A Warner Music informou que a receita de streaming do segundo trimestre cresceu menos de 3% em relação ao período em 2021, enquanto a gravadora Universal, líder do mercado, disse que as vendas de assinaturas de streaming cresceram apenas 7%, depois de anos de alta em dois dígitos.

No entanto, enquanto tudo isso acontece, Massarsky continua otimista. Ele menciona novas formas de ganhar dinheiro com música, por exemplo pagamentos quando ela é tocada em bicicletas Peloton ou vídeos do TikTok. "Estamos absolutamente maravilhados com o crescimento", ele disse em julho, em meio à oscilação dos mercados de ações. "É uma cesta do bem."

Tradução de Paulo Migliacci

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