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Conheça o book stylist, que escolhe livros para famosos tirarem fotos e desfilarem

No anonimato, curadores põem obras nas mãos de influenciadores digitais e modelos como tendência vintage

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Dior usou o manuscrito de ‘On the Road’, de Jack Kerouac, para montar a passarela de seu desfile da coleção masculina de outono

Dior usou o manuscrito de ‘On the Road’, de Jack Kerouac, para montar a passarela de seu desfile da coleção masculina de outono Divulgação

Indaiatuba (SP)

Uma figura misteriosa tem circulado nos bastidores do mundo das celebridades e dos influenciadores de Instagram. É o book stylist, ou estilista de livros, um sujeito que seleciona títulos para outras pessoas mostrarem em publicações ou carregarem nas mãos ao caminhar nas ruas.

Dior usou o manuscrito de ‘On the Road’, de Jack Kerouac, para montar a passarela de seu desfile da coleção masculina de outono
Dior usou o manuscrito de ‘On the Road’, de Jack Kerouac, para montar a passarela de seu desfile da coleção masculina de outono - Divulgação

Há dois anos, a modelo Kaia Gerber, que tem mais de 8 milhões de seguidores no Instagram e desfiles para Valentino, Miu Miu e Chanel no currículo, começou um clube do livro durante a quarentena, no qual entrevistou autores em lives.

No ano anterior, ela já havia sido vista do lado de fora da Fondazione Prada, durante a Semana de Moda de Milão, com um exemplar de "The Overstory", de Richard Powers, autor que já venceu o Pulitzer, um dos prêmios mais importantes do mundo para literatura. A capa era visível para os fotógrafos.

Kaia Gerber lendo
A modelo Kaia Gerber em uma das fotos de seu Instagram em que aparece lendo - Instagram/Reprodução

No Brasil, Gigi Hadid, também modelo, chamou a atenção ao aparecer no mesmo evento carregando nas mãos "O Estrangeiro", de Albert Camus. Sua irmã, Bella Hadid, foi fotografada com uma cópia de "Outsider", de Stephen King, um grande e chamativo tijolo vermelho que o jornal americano The Washington Post diz ter sido o principal acessório fashion de 2019.

Não é possível afirmar com todas as letras que as modelos contrataram estilistas de livros, mas, a julgar por uma reportagem recente da T, revista de arte, design e comportamento do jornal The New York Times, isso é muito provável. O texto diz que nem Yigit Turhan, diretor de marketing da Valentino em Milão, conseguiu descobrir quem é, afinal, o curador.

Talvez propositalmente, no Brasil não há sinal desse profissional, embora muitas celebridades tenham o hábito de indicar leituras no Instagram. A reportagem questionou dezenas de consultores de imagem, agentes de influenciadores digitais e personal stylists, como são conhecidos os responsáveis pelos looks de celebridades, mas todos disseram nem sequer ter ouvido falar do assunto.

Segundo Lucas Liedke, psicanalista e analista de tendências de cultura e comportamento, a onda de famosos exibirem por todos os lados seus livros é positiva, mas desde que não seja só "espuma". "Se a gente contrata alguém para nos dizer o que comer, por que não podemos terceirizar a curadoria de livros e conhecimento?", questiona.

Ele menciona "A Dieta de Informação", de Clay Johnson. O autor defende que, nos dias atuais, precisamos selecionar cuidadosamente o que lemos, dado o imenso volume de distrações na internet. Na cultura que vivemos, acelerada e de recompensas a curto prazo, conseguir parar para ler é, diz ele, um símbolo de vida interior.

Já a consultora de moda e estilo Chris Francini diz que o livro é um objeto de autoexpressão tal qual uma peça de roupa. É, ainda, o desdobramento mais recente da tendência vintage. "O livro foi esquecido por um tempo, mas está voltando", diz ela. "Os influenciadores são como revistas. Você pode comprar na banca ou não e você pode seguir ou não. Eles influenciam as pessoas a terem hábitos para além do consumo."

Outras aproximações recentes entre os mundos da literatura e da moda são a inusitada presença na passarela de Ottessa Moshfegh, autora de "Meu Ano de Descanso e Relaxamento", e de Maryam Nassir Zadeh, na Semana de Moda de Nova York deste ano. Ela também foi convidada pela Proenza Schouler para escrever um conto lido no desfile daquele ano.

No mesmo evento, a Dior se inspirou em "On the Road", que no Brasil ganhou o nome "Pé na Estrada", ao apresentar uma coleção masculina. A passarela remetia ao mítico rolo de papel de 36 metros em que Jack Kerouac datilografou a obra. Em junho, o parisiense Louis Gabriel Nouchi apresentou uma coleção inspirada em "As Ligações Perigosas", de Choderlos de Laclos.

No ano passado, a Valentino se juntou ao Belletrist, clube do livro da atriz Emma Roberts, para divulgar a campanha "The Narratives", que celebrou a palavra escrita e teve participação de autores como Leïla Slimani e Michael Cunningham. No ano anterior, a maison Chanel inaugurou um clube do livro.

São provas de que as passarelas e a literatura estão em sinergia. Isso não é de hoje, diz Carolina Casarin, doutora em artes visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de "O Guarda-Roupa Modernista", da Companhia das Letras. "Designers e estilistas têm usado a palavra para vincular uma ideia de inteligência às marcas."

Exemplo disso é Oswald de Andrade, que ajudou a definir a estética modernista sobrepondo camisas estampadas com jaquetas inspiradas na informalidade americana e usando colarinhos sem goma em detrimento do colarinho duro como símbolo de respeitabilidade. O escritor estava adiantado em quatro décadas em relação aos padrões de vestuário dos anos 1920. Ronaldo Fraga, do outro lado, é hoje um exemplo de estilista com forte inspiração literária.

Já Leah Price, professora da Universidade Harvard e autora de "What We Talk About When We Talk About Books", ou sobre o que falamos quando falamos sobre livros, relembra uma cena comum na Grã-Bretanha do século 19. "As damas forravam bíblias com couro azul para combinar com seus sapatos azuis, da mesma forma que botamos capas em nossos smartphones."

Ela relembra ainda de quando, nos anos 1940, o humorista irlandês Flann O'Brien criou um serviço de manuseio de livros para servir clientes interessados em ter prateleiras cheias. A proposta era dar aos livros a aparência do desgaste causado pela leitura. "Hoje, os estilistas de livros tornaram essa piada real", diz Price.

Na contramão dos demais especialistas, Casarin, a professora, questiona se o estilista de livros pode não ser apenas a ferramenta mais nova da cultura de marketing pessoal que impera nos dias de hoje.

Uma foto da socialite Kendall Jenner tomando sol em um iate enquanto lia "Tonight I’m Someone Else: Essays", de Chelsea Hodson, chamou a atenção. Mas desde quando ler em um momento de lazer é algo tão incomum? Para quem vive de imagem, tudo é feito com intenção mercadológica, diz Casarin. "O livro agora está sendo usado para construir a imagem de personas públicas, e a gente nunca vai saber se elas são reais ou não."

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