Paul Newman fala da baixa autoestima e do alcoolismo em autobiografia póstuma

Astro de Hollywood que parecia imbatível se revela frágil em livro feito a partir de milhares de páginas de entrevistas inéditas

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Dave Itzkoff
Nova York | The New York Times

Décadas depois do começo de sua carreira tremendamente bem-sucedida de ator, Paul Newman fez uma confissão. "Me vejo diante de uma verdade chocante: não sei nada".

Newman estava na casa dos 60 quando disse isso e já havia estrelado uma vida inteira de filmes fundamentais, incluindo "Gata em Teto de Zinco Quente", "Desafio à Corrupção", "O Indomado", " Rebeldia Indomável" e "O Veredicto".

Era uma celebridade imediatamente reconhecível, apesar de relutante, idolatrado por sua calma, seus olhos azuis penetrantes e seu casamento aparentemente de conto de fadas com a igualmente talentosa Joanne Woodward. Havia criado uma família e entrado para a lista dos inimigos do presidente Richard Nixon por sua defesa de causas liberais. Newman ainda iria pilotar carros de corrida e fazer filantropia.

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Paul Newman em cena do filme 'Rebeldia Indomável', de 1967 - Divulgação

Mesmo assim, o ator, que morreu em 2008, era atormentado por dúvidas quanto a seu próprio valor, questionava suas próprias escolhas constantemente e não perdoava seus erros passados. "Sempre faço questão de reconhecer meus fracassos", ele disse. "Não ser bom o suficiente, não estar com a razão." Apesar de suas hesitações, acrescentou: "Tenho certeza que ninguém pode ser responsável sempre pelo que outras pessoas são. Você só pode ser responsável por quem você mesmo é".

A insegurança que marcou Newman ao longo de toda a vida é um dos temas mais surpreendentes que emergem de uma autobiografia póstuma do autor intitulada "The Extraordinary Life of an Ordinary Man", ou a vida extraordinária de um homem comum. Lançado pela Knopf na terça-feira (18), o livro surpreende pela candura espantosa de seu protagonista, um dos atores mais profissionalmente realizados e mais ciosos de sua privacidade numa era em que a documentação perpétua do cotidiano não era precondição da fama.

Newman não se furta a tratar de temas delicados. Mergulha fundo em suas lembranças e reflete longamente sobre sua infância difícil, sobre o casamento anterior que abandonou antes de se casar com Woodward, sobre seu consumo excessivo de álcool e a perda de seu filho, Scott, morto por uma overdose acidental de drogas e álcool.

A vulnerabilidade que ele revela no livro é espantosa mesmo para pessoas que o conheceram intimamente. "Até os 20 anos de idade, e mesmo depois disso, eu achava que ele era o Superman", disse Clea Newman Soderlund, a mais jovem das cinco filhas do ator. Apesar de já conhecer muitas das histórias que seu pai compartilha no livro, ela disse: "Eu realmente não sabia quão complexas e traumatizantes foram para ele".

O livro não é o resultado de Paul Newman se sentar diante de um teclado e digitar sua história pessoal. Foi compilado a partir de cinco anos de entrevistas que o ator deu ao roteirista Stewart Stern, que fez o roteiro de "Juventude Transviada", seu amigo íntimo, entre 1986 e 1991.

O próprio Stern morreu em 2015, numa época em que se supunha que as entrevistas estivessem perdidas. As transcrições foram recuperadas apenas recentemente, junto com as transcrições de conversas que Stern teve com familiares de Newman, incluindo Joanne Woodward, e colaboradores dele como Elia Kazan, George Roy Hill e Martin Ritt.

As vozes deles também estão incluídas no livro, realizando o desejo de Newman de que eles reforçassem seu próprio relato dos acontecimentos —ou, quando preciso, contradissessem seus equívocos— e oferecessem uma visão mais completa de quem ele foi.

"Ele era fascinado por essa ideia de como as pessoas o enxergavam versus como ele próprio se via", disse sua filha Melissa Newman. "Sempre tive uma visão de meu pai em pé ao lado de um outdoor gigante dele próprio. E ele está ali, acenando ao pé do outdoor, dizendo ‘estou aqui!’."

No final de setembro, Melissa estava na casa rústica em Westport, no estado americano de Connecticut, que ela descreveu como a casa hippie que seus pais compraram 60 anos atrás —e que ela mais tarde comprou deles—, repleta de alto a baixo de recordações da vida e carreira do casal: fotos de seu pai com Frank Sinatra e Louis Armstrong e de sua mãe dando banho nos cachorros na pia da cozinha.

Paul Newman e Joanne Woodward em Paris durante apresentação do filme 'Paixões Desenfreadas', em Paris - AFP

Do outro lado do rio Aspetuck havia outra casa da família, um antigo celeiro com lambris de madeira cuja decoração é dominada por um grande retrato de Paul Newman no papel de Buffalo Bill. A trilha entre as duas casas percorre uma ponte para pedestres e passa ao lado de uma casa na árvore onde, disse Soderlund, anos atrás, Joanne Woodward "ia para se esconder de todos nós quando não estava aguentando mais".

Foi numa lavanderia dessa casa que Emily Wachtel, cineasta, produtora e amiga da família, encontrou um armário trancado contendo parte das entrevistas feitas por Stern com colegas e confidentes de Newman. Mais tarde Wachtel descobriu um guarda-móveis onde estavam as transcrições das entrevistas feitas por Stern com o próprio Paul Newman.

"Havia umas caixas etiquetadas como ‘história de P.N.’. Eu as abri e havia umas 5.000 páginas", ela contou. "A família não as havia visto antes."

A leitura das transcrições não editadas foi uma tarefa difícil para as filhas de Newman. "Fiquei atônita com a tristeza profunda dele", comentou Soderlund. "Aquela tristeza foi realmente difícil para mim. Tive que ler as entrevistas aos poucos, em trechos separados."

As filhas de Paul Newman, Melissa, à esq., e Clea, à dir.
As filhas de Paul Newman, Melissa, à esquerda, e Clea, à direita - Frances F. Denny/The New York Times

Com a assistência de um agente literário, a família Newman vendeu à Knopf um projeto biográfico baseado nas transcrições, e, com a ajuda da editora, o veterano editor de livros e revistas David Rosenthal foi contratado para compilar o material para formar um livro de memórias.

Começando com uma cena dele próprio sentado num sofá em sua biblioteca onde, diz Newman, "fumei um baseado e recordei com clareza absoluta o mapa inteiro da cidade onde passei minha infância", ele relata sua criação em Shaker Heights, no estado de Ohio.

O pai de Newman ajudava a administrar a empresa de artigos esportivos da família, bebia muito e parecia não estar interessado em seus filhos. Sua mãe, pelo contrário, praticamente o idolatrava, e Newman se compara com um dos cachorros dela "que ficou canceroso e tão obeso que mal conseguia se mexer, e minha mãe não parava de lhe dar chocolates, até matá-lo com sua gentileza".

Estudante no Kenyon College, ele investiu igualmente na bebida, em correr atrás de mulheres e no trabalho de ator em que sua mãe o incentivou a apostar.

Newman não demorou a se casar com Jackie Witte, colega estudante de teatro com quem teria três filhos. Mas alguma coisa nele não foi ativada plenamente até ele conhecer Joanne Woodward na produção de "Picnic", de William Inge, na Broadway em 1953. Como diz o ator: "Joanne deu à luz um ser sexual. Ela o ensinou, o encorajou, ela se deleitava com o experimental. Eu estava correndo atrás do tesão."

O caso não chegou a ser vivido às escondidas, e, apesar de Newman acabar se divorciando de Witte e se casando com Woodward, se arrependeu de magoar os filhos que teve com a primeira e de não ter se explicado para eles. "Eu me enxergava como alguém situado em algum lugar no meio", diz o ator. "Um pouco de perversidade, muita coisa boa —e eu era um provedor. Mas o que eu fiz simplesmente não teve classe nenhuma."

Sua ascensão astronômica como ator prosseguiu: Newman recebeu dez indicações a Oscar e levou o prêmio em 1987 por "A Cor do Dinheiro". Ele também ganhou um Oscar honorário em 1986 e o Prêmio Humanitário Jean Hersholt da Academia em 1994.

Mas não faltaram decepções e tragédias em sua vida. Ele se debateu com o alcoolismo, hábito que sabia ser autodestrutivo, mas que, ele diz, "destrancou muitas coisas que eu não teria podido fazer sem o álcool". E ficou devastado quando seu filho, Scott, que levara uma vida itinerante à sombra do pai e estava fazendo tratamento psiquiátrico, morreu aos 28 anos, em 1978.

"Percebo que chega a haver algo de grotesco em pedir ‘me perdoe’", fala Newman. "A energia aí fora que representa aquele garoto me mandará à merda e dirá: ‘De que me adianta isso?’."

As filhas não tiveram certeza do que levou ao fim das entrevistas de Newman a Stern ("cinco anos passados falando de você mesmo é muito tempo, e papai não gostava muito de falar dele mesmo", disse Soderlund) nem do que foi feito daquelas gravações originais. Elas acreditam que seu pai destruiu as gravações e não sabem ao certo o porquê.

Parede com memorabilia e fotos pessoais de Paul Newman em celeiro da família em Westport, no estado americano de Connecticut
Parede com memorabilia e fotos pessoais de Paul Newman em celeiro da família em Westport, no estado americano de Connecticut - Frances F. Denny/The New York Times

Melissa Newman disse que o testamento de seu pai as autorizou a publicar uma biografia dele, e as irmãs acharam que o livro é uma oportunidade crucial para corrigir equívocos a respeito dele e Joanne Woodward, que está com 92 anos e vive longe dos holofotes desde que foi diagnosticada com a doença de Alzheimer.

"Sentimos que seu legado não estava recebendo a atenção devida", disse Melissa Newman. "Mais pessoas conhecem James Dean ou Elizabeth Taylor que ele. Ninguém sabe quem é meu pai."

Mesmo assim, o próprio Newman parece ter pensado que havia limites a quanto ele podia realmente revelar a outras pessoas.

Como ele diz no livro, quer as plateias pensassem que ele era Hud, Butch Cassidy ou qualquer outro personagem de filme que ele representasse, tudo isso era apenas "uma casca que é fotografada na tela, que os fãs correm atrás e que recebe toda a glória. Enquanto quem está realmente dentro de mim, o cerne, permanece inexplorado, desconfortável e desconhecido."

Tradução de Clara Allain

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