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Terence Davies une poesia, guerra e gays sarcásticos em 'Benção', na Mostra de SP

Cineasta exibe o que considera ser o seu melhor filme, sobre autor pacifista que viveu entre amores e crises existenciais

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São Paulo

Terence Davies parece um homem perdido no mundo moderno. É estranho ver suas bochechas coradas, o olhar dócil e o cabelo ralo e branco do diretor britânico em uma telinha, com um grande fone preto. "Ouço ele, mas baixinho", sussurra o diretor a seu assistente, pedindo ajuda para aumentar o volume.

Mas questões tecnológicas não preocupam este cineasta de 76 anos, natural de Liverpool, ateu, gay e celibatário desde os anos 1980 e que nunca pôs algo mais avançado do que uma TV ou um carro em seus filmes —todos de época.

Jack Lowden vive o poeta Siegfried Sassoon em cena de 'Benção', filme de Terence Davies
Jack Lowden vive o poeta Siegfried Sassoon em cena de 'Benção', filme de Terence Davies - Laurence Cendrowicz/Divulgação

"Benção", em exibição na Mostra de Cinema de São Paulo, também parece flutuar entre tempos. Conhecemos a vida do poeta Siegfried Sassoon, desde 1914, quando se alista para lutar na Primeira Guerra Mundial, passando por seu manifesto contra o conflito, pelas suas aventuras amorosas num país onde ser gay era crime, até pouco antes da sua morte, em 1967 —quando se converte ao catolicismo em busca de redenção. Não encontra o que quer.

"É difícil pôr em palavras, mas ele precisava de amor, não do tipo físico", diz Davies, cuja criação na igreja só o encheu de culpa. "Para achar esse tipo de redenção é preciso amar a si mesmo primeiro. Ele não se amava nem eu me amo. Sou cheio de falhas, assim como quis mostrar Emily Dickinson", poeta americana perfilada no seu filme anterior, "Além das Palavras", de 2016.

Teria o cineasta, então, dedicado esse afeto redentor aos seus personagens? "Não, só senti que estava na companhia de dois ótimos pecadores".

Declarações como essa mostram como Davies é autobiográfico mesmo ao tratar dos outros. É a sina que o persegue desde seus primeiros filmes dos anos 1980, passando por adaptações literárias como "A Essência da Paixão", de 2000, ou "A Canção do Pôr do Sol", de 2015.

No caso dos seus últimos filmes, Davies recorreu a biografias para escrever os roteiros, bem distantes de biopics comerciais como "Blonde", sobre Marilyn Monroe, ou "Elvis". "Sou idiota demais para fazer esse tipo de filme. Dou valor ao que faço, mas isso me prejudica financeiramente", diz ele, à margem dos grandes estúdios.

O cineasta britânico Terence Davies, que dirigiu 'Além das Palavras' e 'Benção'
O cineasta britânico Terence Davies, que dirigiu 'Além das Palavras' e 'Benção' - Divulgação

Essa tal estupidez se confunde com a paixão insuspeita pelos personagens. "Porque não pude parar à espera da Morte,/ Ela teve a bondade de esperar por mim;/ Na carruagem íamos só nós/ E a Imortalidade", recita ele ao falar da inteligência de Dickinson, e como a obra dela e de Sassoon conduziram sua intuição na feitura dos filmes, repletos de textos declamados em off.

Mas por mais cerebral que o filme possa parecer, descendo ao nível da fossa de "Amor Profundo", de 2011, é o humor quem conduz boa parte do filme. Afinal, Sassoon, interpretado em sua mocidade por Jack Lowden, fez parte da alta roda londrina dos anos 1920, os chamados Bright Young Things --e nomes como o ator Ivor Novello e o decadentista Stephen Tennant ganham muita vida no filme como gays de língua ferina, vaidosos e muitas vezes misóginos.

São figuras, reconhece Davies, que nos fazem ver que mesmo um filme de época pode falar do mundo contemporâneo. Se ele não economiza em cenas cheias de sarcasmo, melodrama, traição e gozações com Stravínski, como bom celibatário, acha que o filme não ganharia nada se fosse obcecado por sexo.

O poeta Siegfried Sassoon, que lutou durante a Primeira Guerra Mundial
O poeta Siegfried Sassoon, que lutou durante a Primeira Guerra Mundial - Reprodução

"Sexo nos filme nunca é interessante, só mostra as pessoas se agarrando e suando como se estivessem na academia. Não dá para acreditar", diz. "Eu nunca fui bom em sexo de qualquer forma e nunca consegui entender porque cresci achando que era errado".

"Os franceses acham graça no sexo. Os britânicos, em mortes", diz Davies, relembrando o humor inglês de "As Oito Vítimas", filme em que Alec Guinness vive todos os personagens que são assassinados. "É preciso ter humor mesmo nas situações desagradáveis."

O filme sabe tratar a homossexualidade —que deixou de ser crimes no Reino Unido no ano da morte de Sassoon— sem panos quentes e tem um interesse maior em conhecer a alma do protagonista, exista ela ou não, ao longo dos anos.

Peter Capaldi, que vive o poeta no fim da vida, expressa bem essas amarguras, de um homem que acaba se casando com uma mulher por mera conveniência, como era comum entre gays na época.

Na prática, o drama que pode parecer fora de quadro, mas que envelopa toda a trama, é a paixão de Sassoon por Wilfred Owen, poeta que conhece no hospital psiquiátrico onde é internado durante a guerra após seu protesto —benesse que só desfrutou por ser da elite, escapando de se tornar uma das 20 milhões de vítimas do conflito, e cuja miséria Davies mostra com imagens de arquivo chocantes.

O parceiro morreu uma semana antes do fim da guerra, o que atormentaria Sassoon até o fim. Não à toa, é "Disabled", um áspero poema de Owen, que encerra o filme. "Esse fato transformou Sassoon num grande poeta", afirma Davies. "É o melhor filme que eu já fiz".

Agora, Davies prepara uma adaptação do romance "A Embriaguez da Metamorfose", de Stefan Zweig, e um filme sobre os últimos dias do dramaturgo Noël Coward, um dos maiores nomes do teatro britânico. "Espero que os dois filmes sejam lançados. Mas só Deus sabe quando."

Benção

  • Quando Em cartaz na Mostra de SP: Espaço Itaú Frei Caneca, quinta (20), às 14h; Cinesesc, dia 23, às 18h30; Espaço Itaú Augusta, dia 26, 16h20; Reserva Cultural, dia 28, 16h30
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Jack Lowden, Peter Capaldi e Kate Phillips
  • Produção Reino Unido, 2021
  • Direção Terence Davies
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