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Erasmo Carlos

Erasmo Carlos sabia não se levar a sério mesmo no sexo ou na filosofia

Nem sempre reconhecido pela crítica, cantor carregou letras de ironia, honrando suas origens roqueiras e suburbanas

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São Paulo

Se Roberto Carlos vendeu mais de 140 milhões de discos e chegou a ter uma mesma canção tocada 3.500 vezes no rádio em um único dia, Erasmo Esteves, que morreu nesta terça-feira (22) aos 81 anos, sofreu com os altos e baixos do próprio Brasil e teve de interagir com uma variedade maior de estilos e temas, ao mesmo tempo em que se manteve fiel à espontaneidade bem-humorada que caracterizava a sua personalidade artística, a começar pelo sobrenome artístico "Carlos", adotado também para selar a irmandade com o amigo.

Em canções como "Filho Único", do álbum "Banda dos Contentes" (1976) ou em "Cachaça Mecânica", talvez sua obra-prima, presente em "1990: Projeto Salva Terra!" (1974), ele não entrega a música cegamente a produtores da moda ou fora dela.

"Carlos, Erasmo", de 1971
O cantor Erasmo Carlos em capa do disco 'Carlos, Erasmo', de 1971 - Divulgação

Há uma fidelidade às suas origens, roqueiras e suburbanas, que ele não deseja abandonar. E há também um diálogo sério, nem sempre reconhecido pela crítica, com os seus colegas de geração: Caetano Veloso, Jorge Ben Jor, Tim Maia e Chico Buarque.

Mas o bom humor de Erasmo pode ficar sério e se revestir de uma ironia quase cínica, como em "Panorama Ecológico", do disco "Pelas Esquinas de Ipanema (1978): "homens perfeitos", "homens imaculados" e "homens inteligentes" são confrontados com as temporadas de flores, pássaros e peixes, das "sempre-vivas quase mortas", dos "pardais viciados" e das "sardinhas inchadas". Erasmo canta com um desânimo fatalista. É uma letra difícil, mas que foi aprendida pelo público, que se divertia em desfilar os nomes estranhos dos vegetais e animais.

Em "Coqueiro Verde", do ótimo álbum "Erasmo e os Tremendões" (1970) ele exercita um estupendo samba rock, com direito a solo de cuíca, do nível dos melhores de Ben Jor, que, aliás, igualmente gravou a música.

Essa verve brincalhona e autoconsciente já estava nos primeiros anos, como em "Minha Fama de Mau", de seu primeiro LP, "A Pescaria" (1965). Não há como não se divertir com o refrão, infantil, sim, mas também irônico: "Digo não / digo não / digo não, não, não", ou na ótima "Vem Quente que Eu Estou Fervendo", que gravou em "Erasmo Carlos: O Tremendão", de 1967.

No início dos anos 1970 Erasmo também abdica da fama de mau, e se arrisca mais, como no álbum "Sonhos e Memórias" (1972), um de seus melhores, que traz músicas como "Sorriso Dela" e "Sábado Morto", canção jazzística ao início, que passa por um diálogo com Beatles e Clube da Esquina, rock progressivo, e encontra, enfim, a batucada brasileira do subúrbio carioca.

A criatividade prossegue em "Carlos, Erasmo", de 1971, que abre com "De Noite na Cama", composição encomendada por Erasmo a Caetano Veloso, feita na época em que o baiano estava exilado.

Quando se trata das explicitudes do amor, Erasmo mantém o espírito roqueiro, mais pesado e não idealizado, como em "Boca Descarada" (1973): "Quero que seu beijo não tenha mais fim/ pra fazer tremer meu corpo inteiro". Atrevimento e descaramento já estavam presentes antes, em "Vou Ficar Nu para Chamar sua Atenção" (1970).

Erasmo beira o puro surrealismo em algumas canções, cujo exemplo maior pode ser "Pega na Mentira" (do LP "Mulher", de 1981): afinal, quem teria coragem de escrever esses versos –e mantê-los na canção sem medo no dia seguinte? "Já gravei um disco/ voador; disse a Castro Alves/ seu valor; vi papai Noel/ numa favela", o que inclui a percussividade verbal quase tropicalista de trechos como "Amazônia presa a sua mata-ta-ta" ou "Carnaval agora é um dia só/ Sem censura e guaraná em pó-pó-pó".

E, claro, o mais esdrúxulo verso de todos —especialmente para um vascaíno como ele: "Zico está no Vasco... com Pelé". Mais um exemplo dessa pegada é "O Comilão", de 1973, censurada pela ditadura militar —até hoje não se sabe, de fato, o porquê.

O melhor Erasmo Carlos é o que seriamente não se leva a sério, e sabe "não saber", e aqui o melhor está em "Sou uma Criança Não Entendo Nada" (1974), plena de sabedoria oriental —precisa, exata, geométrica— um Lao Tsé da Tijuca conversando com a mãe. Para lembrarmos de um único verso, totalmente não dogmático: "Rezo muito, mas eu não me iludo".

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