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Erasmo Carlos

Erasmo Carlos, o gentil com fama de mau, fez o rock ter sentido no Brasil

Artista injetou movimento e desejo sexual numa juventude que tinha a bossa nova como sinônimo de modernidade

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São Paulo

"Na hora que você goza, você diz ‘meu deus!’, e não ‘my god!’, então é por isso que eu faço rock em português", disse Erasmo Carlos, morto nesta terça-feira (22) aos 81 anos, em entrevista ao programa "Erasmo 80", lançado no ano passado e disponível no Globoplay. É uma frase trivial, mas que continha muito do que ele representou no imaginário popular —a provocação sexual, a franqueza no discurso e o ímpeto de fazer a trilha sonora de uma juventude com propensão à rebeldia fazer sentido no Brasil.

Oo cantor e compositor Erasmo Carlos no hotel Maksoud Plaza, em São Paulo em de abril de 1983
Oo cantor e compositor Erasmo Carlos no hotel Maksoud Plaza, em São Paulo em de abril de 1983 - Derly Marques/Folhapress

Sem vitrola em casa e sem saber falar inglês, Erasmo começou fazendo versões em português de sucessos do rock americano de seus primeiros ídolos, entre eles Elvis Presley e Little Richard. Ali, ainda que bastante preso à reprodução de uma música estrangeira, ele já trilhava o caminho de dar uma interpretação brasileira ao rock.

Isso porque suas versões eram menos traduções do que criações livres a partir de uma base estética. Erasmo usava os acordes básicos no violão que aprendeu com Tim Maia e a batida roqueira importada do blues para contar histórias que representavam uma juventude brasileira —inspirada nos "moderninhos" que frequentavam o bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde ele morava.

"Splish Splash", versão de um rock dos anos 1950 feita por Erasmo, foi um dos primeiros sucessos do chamado iê iê iê no Brasil, na voz de Roberto Carlos. Enquanto a letra original, em inglês, parte de uma cena do banheiro para falar de uma festa, em português a música trata de um namoro no cinema, transformando a onomatopeia do barulho de água na de um beijo e de um tapa.

Materializado no programa de TV "Jovem Guarda" —exibido pela TV Record aos domingos, de 1965 a 1968—, o movimento encabeçado por gente como Erasmo, Roberto, Wanderlea e Renato e Seus Blue Caps, entre outros, injetava libertação, movimento e desejo sexual numa juventude que tinha a bossa nova como sinônimo de modernidade. Se a música de João Gilberto era cândida e contemplativa, calcada no violão, "Parei na Contra Mão" e "É Proibido Fumar", de Erasmo e Roberto em 1963, são ação pura, com a guitarra elétrica em primeiro plano.

É interessante notar como a ascensão de Erasmo e da Jovem Guarda é contemporânea à dos Beatles —e, portanto, não uma consequência dela. Em seu primeiro álbum, "A Pescaria", de 1965, o Tremendão ironiza o estouro global do quarteto de Liverpool, partindo de um arranjo que ecoa "I Wanna Hold Your Hand", clássico dos ingleses, e promete acabar com a beatlemania.

"Cabelo comprido/ Nunca foi prova de ser mau/ Se eu não puder na mão/ Eu brigo até de pau/ Podem vir todos os quatro/ Que eu não temo ninguém", ele canta em "Beatlemania". Com uma violência masculinamente inocente, Erasmo chama John Lennon e Paul McCartney para sair na mão, se colocando como mais selvagem que a turma que popularizou a ideia de rebeldia como expressão musical daquela juventude —bastante para quem foi tido como mero reprodutor de uma expressão importada.

Falando sobre paqueras, festas e carros, a Jovem Guarda também foi tratada como alienada ao competir por audiência com a música mais ligada às questões brasileiras que tocava na era dos festivais, no fim dos anos 1960. De fato, a arte de Erasmo não era intelectualmente um contraponto à ditadura militar que se estabeleceu na mesma época do iê iê iê.

Por outro lado, poucas expressões artísticas foram tão contestadoras dos costumes e do conservadorismo do Brasil àquela altura —o que não deixa de ser um ato político. Trocando os ternos pelas camisas abertas, revelando o peitoral, e as pulseiras, Erasmo ajudou a inaugurar a ideia de fazer uma arte que dialogava exclusivamente com os anseios mais urgentes da juventude, e não só aquela mais letrada, frequentadora das universidades e preocupada com os rumos do país.

Não à toa, ele é uma das influências primordiais da tropicália, que misturou Jovem Guarda e João Gilberto sem pudor. Gal Costa, ícone do movimento e que também morreu neste mês, gravou músicas de Erasmo desde seu primeiro álbum, e foi o Tremendão quem compôs "Meu Nome é Gal", um de seus clássicos, para ela.

Foi a tropicália, aliás, com cabeludos ainda mais cabeludos que os da Jovem Guarda, que de certa forma jogou aquele rock jovial para a obsolescência, um período que Erasmo sofreu na pele, e o qual superou para sair ainda mais forte. Em 1970, no disco "Erasmo Carlos e Os Tremendões", compôs a reflexiva "Sentado à Beira do Caminho" e a brasileiríssima "Coqueiro Verde", gravou "Saudosismo", de Caetano Veloso, e iniciou uma transição para o momento mais brilhante de sua carreira.

Aquele álbum deu início à fase adulta de Erasmo, coroada com "Carlos, Erasmo", disco de 1971 que é possivelmente sua obra mais relevante. Foi quando ele trocou de gravadora e foi para a Polygram do diretor André Midani e do produtor Manoel Barenbein, onde teve liberdade artística suficiente para se desprender do passado e rebobinar sua discografia.

Se Erasmo alimentou a tropicália, agora era ela quem o alimentava. Caetano mandou de Londres "De Noite na Cama", feita para o Tremendão, de Jorge Ben Jor ele gravou "Agora Ninguém Chora Mais" e Lanny Gordin, o guitarrista que ajudou a formatar o som dos álbuns de Caetano, Gil e Gal, toca em "Carlos, Erasmo". É um disco que vai do samba rock e do soul ao rock e à psicodelia, da sutileza à estranheza, sem abandonar a voltagem sexual —como em "Dois Animais na Selva Suja da Rua", composição de Taiguara— e mencionando até a maconha —em "Maria Joana".

Os cantores Roberto Carlos (à dir.) e Erasmo Carlos durante a festa de aniversário de Roberto
Os cantores Roberto Carlos (à dir.) e Erasmo Carlos durante a festa de aniversário de Roberto - Kanai/Folhapress

"Carlos, Erasmo" é cheio de camadas e abraça por completo a personalidade multifacetada de Erasmo, que a partir dos anos 1970 desenvolveu sua carreira entre o rock e a MPB. Marcado pela fama de mau, ele virou o Gigante Gentil quando expôs a sensibilidade de um dos maiores autores de músicas românticas do Brasil, ao lado de seu maior parceiro, Roberto.

Se as mulheres eram objeto de desejo nos anos 1960, eram elas quem Erasmo tocava com seu repertório romântico e mais popular, especialmente na voz de Roberto. O moleque que ia atrás dos "brotos" e queria sair na porrada com os Beatles, em 1981, gravou "Mulher (Sexo Frágil)", em que se coloca aos pés da força feminina.

Erasmo ficou maduro demais para os roqueiros que o vaiaram na primeira edição do Rock in Rio, em 1985, em caso marcante da história do rock no Brasil. Nessa época, ele já era reconhecido como um dos pioneiros nacionais do estilo, que explodia com uma nova geração na década de 1980.

Erasmo continuou lançando álbuns até o ano de sua morte, sem o mesmo sucesso comercial de outrora, mas justamente reverenciado como um dos grandes da música nacional. Isso porque não só o amigo Roberto é um produto direto dele, mas também a música romântica, a tropicália e, principalmente, todo o jeito brasileiro de se fazer rock. Afinal, cabelo cumprido nunca foi prova de ser mau.

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