Quem é o produtor de álbuns clássicos da tropicália, de Gil, Caetano, Gal e Jorge Ben Jor

Manoel Barenbein, hoje com 80 anos, recorda as inovações, os improvisos e as gambiarras que definiram a sonoridade da MPB

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Montagem feita a partir da capa de álbuns da Tropicália produzidos por Manoel Barenbein

Montagem feita a partir da capa de álbuns da tropicália produzidos por Manoel Barenbein Márcio Sampaio

São Paulo

Na metade dos anos 1960, Manoel Barenbein já tinha trabalhado com gente como Erasmo Carlos, o bossa-novista Walter Silva e a dupla sertaneja Tonico e Tinoco, entre outros. Mas ele tinha um sonho.

"Era poder usar guitarra na música brasileira", diz o produtor, nome por trás dos principais álbuns tropicalistas, além de ter descoberto Chico Buarque e produzido, entre outros, Jair Rodrigues, Originais do Samba, Ronnie Von e Nara Leão.

"Eu tinha um ídolo, o Aloysio de Oliveira. Ouvia as gravações dele, de bossa nova, ficava maluco com o que ele fazia, e como ele fazia", diz Barenbein, que acaba de fazer 80 anos. "Ao mesmo tempo, tinha os Beatles do outro lado. O meu sonho era fazer o que Aloysio fazia, mas colocar a guitarra junto. Só que isso era pular um muro imenso."

A história de como Barenbein conheceu Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes e Jorge Ben Jor e participou de maneira definitiva da gênese da tropicália é destrinchada no livro e podcast "O Produtor da Tropicália", do jornalista Renato Vieira.

A obra, a ser lançada pelo selo Garota Books FM, está em campanha de financiamento coletivo até sábado (2) e, se atingir a meta financeira, vai ser lançada ainda neste ano.

Barenbein conta que tudo mudou quando Gil e Caetano surgiram em sua vida. "Eles queriam as guitarras. A partir daquele minuto, eu assumi. E enfrentei mesmo. Havia um purismo que não era fácil. Eram os grandes nomes da MPB, que não aceitavam a guitarra elétrica. Tinha um apresentador de rádio que dizia, ‘o Manoel tá querendo arrebentar a música brasileira’. Eu fiquei assustado porque ele falava com raiva."

Em seu livro, "Verdade Tropical", de 1997, Caetano diz que a participação de Barenbein, comprando suas ideias, foi decisiva para o movimento. O produtor lembra as vaias e a resistência da plateia quando Caetano cantou "É Proibido Proibir" no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1968, acompanhado pelos Mutantes.

"O público jogou o que parecia bolota de papel de jornal, mas tinha pedra dentro. Eu estava ajudando os Mutantes a tirar os instrumentos do palco. É coisa quase de atentado físico", diz.

Mas foi essencialmente dentro "das quatro paredes do estúdio", como diz Barenbein, que eles puseram o plano em prática. No fim dos anos 1960, as gravações eram feitas de maneira quase artesanal, em mesas com poucos canais e corte das fitas na mão, o que exigia uma criatividade do produtor e seus engenheiros de som para registrar em disco as inovações daqueles artistas.

Na faixa-título do clássico álbum "Tropicália ou Panis et Circencis", por exemplo, eles gravaram pessoas conversando e talheres batendo para ilustrar as "pessoas na sala de jantar" da letra. "Era tipo uma radionovela", diz. "Ninguém fazia isso."

Barenbein também se lembra do efeito psicodélico no segundo minuto da música, uma artimanha feita puxando a fita da gravação de um lado e deixando o outro se soltar lentamente. "A gente estava indo contra tudo que era tecnicamente normal. Não por desrespeito, mas porque a gente achava que era legal."

O produtor musical Manoel Barenbein em entrevista à Folha em 1997
O produtor musical Manoel Barenbein em entrevista à Folha em 1997 - Matuiti Mayezo/Folhapress

A partir de 1967, diz Barenbein, o momento era de transformação na música brasileira. Ele tinha o costume de trabalhar com o maestro Rogério Duprat, e só o fato de juntar orquestra com guitarra distorcida já era inovador, como aconteceu em "Domingo no Parque".

Barenbein conta que as máquinas de fita tinham um processo de ajuste para não distorcer as gravações. "Peguei um engenheiro reclamando que ficava horas a fio ajustando a máquina para não ter um ruído. Aí chega o músico, pisa no pedal e ‘destrói tudo’", ele diz. "Imagine o Serginho [Dias, dos Mutantes] entrando com aquela guitarra no fim de ‘Domingo no Parque’. Era para os técnicos ficarem putos —mas não, eles embarcaram."

Ele produziu os álbuns que levaram os nomes de Gil e Caetano lançados em 1969, entre a saída deles da prisão e a ida a Londres exilados. A dupla estava sem poder fazer shows, sem dinheiro, e sem poder aparecer em público em Salvador. Pela falta de estrutura dos estúdios baianos, o processo de gravação foi feito na base da gambiarra.

"Quando montamos os instrumentos e o baterista deu uma pancada no prato eu disse ‘esquece, vamos pensar em outra coisa’", recorda. "Tem uma cena que não dá para esquecer. Gil, Caetano, Duprat e eu sentados no chão do estúdio, pensando, ‘o que vamos fazer?’."

O "salvador da pátria", ele diz, foi Duprat, que teve a ideia de gravar Gil tocando os violões dos dois álbuns, além das vozes, com o metrônomo mantendo os dois no tempo correto, para só depois, no Rio de Janeiro, gravar o resto da banda. "Tem coisas malucas. Em ‘Chuvas de Verão’, do Caetano, o que seria uma vassourinha de bateria é uma folha de papel roçando no chão."

"Em ‘Marinheiro Só’, o coro eram as duas irmãs [namoradas de Caetano e Gil], Dedé e Sandra, e mais três ou quatro meninas que eram [prostitutas], encontradas pelo nosso motorista. Se tivesse sido um coro de verdade não teria ficado legal", ele continua.

"Em ‘Irene’, tem um trecho que o Gil erra e para tudo. Era para cortar ali. Mas a gente foi deixando. Quando o Lanny [Gordin] foi botar a guitarra, ele começou a improvisar. Falei, ‘não apaga pelo amor de deus’, e aquilo ficou. Foi uma loucura."

Essa espontaneidade de deixar diálogos e improvisos nas gravações finais foi uma das marcas do trabalho de Barenbein. Em "Tropicália", faixa do clássico álbum tropicalista de Caetano de 1967, por exemplo, o discurso que abre a música foi uma brincadeira no estúdio que acabou ficando na gravação prensada em vinil.

Barenbein também quase foi preso pela ditadura militar em Salvador, quando estava sozinho no hotel e o recepcionista o avisou que pessoas num carro preto queriam falar com ele. O produtor foi levado a um lugar desconhecido e ouviu que não poderia promover eventos com Caetano e Gil, recém-saídos da prisão.

"Eu disse que não era evento, mas não adiantava. Aí me veio uma luz, peguei a pasta com todas as letras autorizadas pela censura. Expliquei que estava autorizado por Brasília", ele diz. "Depois que eu saí comecei a sentir medo, a entender onde eu estive. Se acontecesse algo, não havia testemunha. Só no começo, o rapaz da recepção do hotel."

Barenbein é um poço de histórias deliciosas da MPB na virada dos anos 1960 para os 1970, que estarão presentes no livro sobre ele. Ele se lembra de tentar, com os Originais do Samba, que acompanhariam gravações de Jair Rodrigues, achar a maneira perfeita de se gravar um surdo.

"O [percussionista] Rubão trouxe três ou quatro surdos de tamanhos diferentes, com peles diferentes. A gente foi desmontando, botando microfone dentro, fora, tentando com dois microfones, até acertar", diz. "Tem coisas que eu ouço hoje e penso ‘como a gente conseguiu fazer isso?’."

O produtor conheceu Chico Buarque num boteco, por meio de Toquinho, ouviu suas primeiras músicas e o convenceu a gravar as faixas como intérprete. Produziu os primeiros álbuns do cantor e se lembra dos bastidores de como "Apesar de Você" passou pela censura.

"Nosso advogado ligou dizendo ‘você está sentado?'. 'A música foi liberada, pode ir ao estúdio gravar’", diz. "Foi uma correria maluca, de ligar para o Chico, chamar os músicos, e gravamos direto. Aí veio o famoso texto no jornal, dizendo que a música era uma homenagem ao presidente Médici. Isso foi num domingo, e na segunda o Exército tomou a fábrica, quebraram tudo que tinha de estoque. A [fita] matriz estava comigo, no arquivo do estúdio, mas não tinha mais o que fazer."

Barenbein trabalhava reunindo repertório para os artistas, levando músicas dos compositores para os intérpretes. Foi ele quem pediu a Erasmo Carlos —de quem produziu o clássico "Carlos, Erasmo"— a letra de "Meu Nome É Gal", gravada por Gal Costa num dos álbuns da cantora assinados pelo produtor.

Foi também ele quem pediu a Jorge Ben Jor a composição que viria a ser "Mano Caetano", gravada por Maria Bethânia em "A Tua Presença", outro disco feito por Barenbein.

Com Jorge Ben, aliás, o produtor fez "Força Bruta", álbum clássico de 1969 cuja gravação destaca em primeiro plano o violão único do artista. "Conversei com o técnico assim —‘quero o violão cheio, na frente, não abaixa, todo o resto vem depois’. E eu falava para o Jorge fazer o que quisesse. Toda vez que ele começava a improvisar, eu deixava correr. Não estava preocupado com o tempo, porque aquilo era a essência do Jorge."

Em 1971, já com muitos amigos exilados, Barenbein foi trabalhar na Itália, depois voltou ao Brasil e continuou produzindo até meados dos anos 1980. Foi quando, já em outro momento da indústria fonográfica, entrou em rota de colisão com diretores de gravadora e acabou deixando a carreira de lado. Hoje, ele mora em Israel.

Se sua atuação não foi tão longeva, Barenbein participou de momentos decisivos de inovação dentro do estúdio. Sua história favorita talvez seja a de quando Rita Lee apareceu com uma bomba de flit, querendo inserir a bugiganga na música "Le Premier Bonheur du Jour", do álbum de estreia dos Mutantes.

"O técnico de som na hora não entendeu nada", diz. "Ela falou que era para substituir o chimbal, aquele prato da bateria. Mas se tinha o chimbal, por que precisava substituir? É porque, senão, não tinha graça. A graça estava em você criar, trazer algo além do que já existe. Você botar a bomba de flit é criar uma outra história. Não é o simples, o baterista tocando o chimbal. Uma coisa é o básico, a outra é o que vale."

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