Descrição de chapéu
Filmes

Jean-Marie Straub criou imagens inesquecíveis em louvor à palavra

Cineasta francês, autor de filmes como 'Crônica de Anna Magdalena Bach' e 'Gente da Sicília', morreu aos 89 anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Neste fatídico 2022, Jean-Marie Straub, um dos últimos grandes do cinema moderno sessentista, se vai, 68 dias após Jean-Luc Godard. Straub se junta agora a sua companheira Danièlle Huillet, morta em 2006, com quem construiu a maior parte da carreira.

Straub e Huillet brilharam em três modernidades: a alemã, a francesa e a italiana. A dupla procurava um cinema diferente entre os anos 1960 e 1970, em sintonia com outros dois grandes artistas: Marguerite Duras e Manoel de Oliveira.

O cineasta francês Jean-Marie Straub, que fez dezenas de filmes ao lado de sua mulher, Danièle Huillet
O cineasta francês Jean-Marie Straub, morto aos 89 anos - Divulgação

Essa procura por uma espécie de cinema de artesanato, em que cada cineasta deve criar por si os meios de suas produções, contra as megaproduções hollywoodianas ou a crescente uniformização do cinema europeu, com textos antigos servindo como roteiros (ou mesmo a própria negação do roteiro), baseava-se num contorno estratégico do chamado naturalismo cinematográfico por meio de uma incansável pesquisa da imagem e da palavra, em como uma insidía na outra e a transformava.

No cinema de Duras e Oliveira, a palavra transforma a imagem, criando uma espécie de não-cinema que era, paradoxalmente, cinema na essência. No cinema de Straub e Huillet a imagem transforma a palavra, da mesma forma que, em seus primeiros filmes, transformava o espaço. São caminhos diferentes que convergem na mesma busca.

A palavra é soberana, sobretudo a partir dos anos 1970. O que não quer dizer que as imagens sejam secundárias. Pelo contrário. As imagens criadas por esses cineastas são inesquecíveis, talvez até pela atenção extrema à palavra.

É "Fortini/Cani", de 1976, o exemplo perfeito desse cinema perseguido por Straub e Huillet, forjado em impressionante consonância com dois filmes de 1975: "India Song", de Duras, e "Benilde ou a Virgem Mãe", de Oliveira.

Os historiadores ainda não souberam precisar esse momento. No entanto, nesses três filmes que representam um cinema da imagem justa e da palavra, algo esteticamente novo foi realizado, talvez pela última vez no cinema.

Se "Fortini/Cani" é o filme exemplar de uma procura estética específica, o espectador poderá notar que a beleza dos filmes anteriores de Straub e Huillet está justamente no percurso em direção a ela.

Os cineastas Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
Os cineastas Jean-Marie Straub e Danièle Huillet - Divulgação

Desde "Não Reconciliados", de 1965, até "Moisés e Aarão", de 1975, passando por obras gigantes como "Crônica de Anna Magdalena Bach", de 1968, "Othon", de 1970, e "Lições de História", de 1972, vemos que a busca da reinvenção estética é o mote do cinema moderno, e por isso os filmes que explicitam esse percurso são tão ou mais belos que aquele que o encerra.

E se "Fortini/Cani" encerra essa busca, também os filmes posteriores, que a consolidam e no processo a modificam, não deixam de ter sua importância no desenvolvimento da carreira, sendo, por vezes, superiores ao filme-farol.

A começar pelo longa seguinte, "Da Nuvem à Resistência", de 1979, uma brilhante costura de obras escritas por Cesare Pavese, ou de "Cedo Demais/Tarde Demais", de 1982, com textos de Friedrich Engels e Mahmoud Hussein.

Igualmente sublimes são "Relações de Classe", de 1984, inventiva adaptação do romance "Amerika", de Kafka, "A Morte de Empédocles", de 1987, a partir da peça de Friedrich Holderlin, e "Antígona", de 1992, a peça de Sófocles filtrada por Bertolt Brecht.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1407200016.htm
Cena do filme 'Gente da Sicília', de Daniele Huillet e Jean-Marie Straub - Divulgação

Fossem só esses, o casal já mereceria um dos lugares mais altos do panteão cinematográfico. Mas em 1999 surgiu um novo acontecimento, o filme pelo qual eles se tornariam conhecidos pelas novas gerações: "Gente da Sicília", baseado em livro de Elio Vittorini.

Nesse outro filme-farol, todo o percurso dos 35 anos anteriores se cristaliza num outro contexto, em que as buscas são quase sempre opostas às do casal. O baque foi tremendo, a ponto de provocar em parte da crítica e da cinefilia o sentimento de que aquilo, sim, era cinema.

É o processo de montagem dessa joia que está registrado em "Onde Jaz o Teu Sorriso?", que Pedro Costa terminou em 2001. Em determinado momento, o realizador português flagra a briga do casal por causa de um único fotograma, assim como a expulsão de Straub da sala de montagem por uma ciosa Huillet, que precisava de calma no momento para resolver um problema que se apresentava.

Após "Gente da Sicilia", seguiram-se três outras adaptações de Vittorini: "Operai, Contadini", de 2001, e os curtas irmãos "O Retorno do Filho Pródigo" e "Os Humilhados", de 2013, que circularam juntamente em diversos festivais, incluindo a Mostra Internacional de São Paulo.

Com a morte de sua companheira, Straub continuou filmando. Agora de forma mais errática, sem a genialidade da parceira, mas compensando com um sentido de urgência, como se a realização o mantivesse vivo.

Os diversos filmes que Straub realizou sozinho estão, contudo, num processo de continuidade com a obra anterior, o que já é sentido no primeiro filme de viuvez: "Le Genou d'Artémide", de 2008, novamente a partir de Pavese, um belo poema de amor dedicado a Huillet.

Exercitando sua liberdade criativa especialmente em curtas e vídeos, dá sua contribuição aos clipes de gatinhos do YouTube ou TikTok com "Où en Êtes-vous, Jean-Marie Straub?", de 2016, com nove minutos dedicados ao amor de um gato. É uma provocação financiada pelo Centro Pompidou e pelo Canal Arte, mas a essa altura, Straub era como Godard. Até filmando divertimentos inconsequentes interessa. Não se trata de uma defesa da política dos autores, mas de entender a maneira como um artista vê o mundo em seus menores detalhes.

Seu último filme é "La France Contre les Robots", de 2020. Nele, um homem, Christophe Clavert, diretor de fotografia dos filmes de Straub entre 2011 e 2015, caminha à beira de um lago recitando reflexões políticas de Georges Bernanos. O curta se encerra após quase cinco minutos, e começa novamente, como se o diretor nos desse as duas tomadas que fez com Clavert, uma com o dia ainda claro, outra no anoitecer. É um testamento belo e coerente para quem realizou toda uma obra em louvor à palavra.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.