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Bienal de São Paulo leva Brasil sombrio à Europa às margens da guerra

Último ato da exposição 'Faz Escuro Mas Eu Canto' leva o mergulho nas cinzas de um projeto de país à França

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Arles (França)

Um pedregulho metálico gigante brilha no horizonte, visto de qualquer ponto da pequena cidade onde Vincent van Gogh pintou os seus famosos girassóis. As cores da estrutura de aço que coroa um museu de arte contemporânea vão mudando ao longo do dia, a depender do bom ou mau humor do tempo, mas seu fulgor resiste mesmo no sol inútil desse quase inverno, em Arles, no sul da França.

Obra de Carmela Gross, na Bienal de São Paulo - Tuca Vieira/Folhapress

É debaixo desse espalhafatoso sinal de esperança, obra de ninguém menos que Frank Gehry, que se desenrola o último ato de uma Bienal de São Paulo que tentou expurgar os horrores do Brasil da pandemia e seus milhares de mortos, o ódio à cultura destilado por um presidente que enfim deixa o Palácio da Alvorada e uma sensação generalizada de sufocamento, a falta mesmo de um horizonte à vista.

Quando a mostra principal abriu as portas em setembro do ano passado no pavilhão da Bienal, no parque Ibirapuera, o impacto foi forte, e a mensagem, claríssima. A seleção de obras realizada por um time liderado pelo italiano Jacopo Crivelli Visconti era um mergulho nas cinzas de um projeto de país, a visão de um lugar carbonizado, a começar talvez pelas florestas tropicais e o velho Museu Nacional, que ardeu em chamas no Rio de Janeiro.

O estado de destruição se mostrava nítido nas obras de Carmela Gross, uma sucessão vertiginosa de desenhos que lembram pedras de carvão ou rochas negras que desmoronam na erupção de um vulcão. Também se deixava ver nas sombras ameaçadoras das obras de Regina Silveira, em que um tanque de guerra, um time de futebol e um grupinho de homens de terno projetam silhuetas pegajosas sobre o espaço —ou mesmo toda a nação— ao redor.

Tudo ali só voltava a ganhar cores nas alas mais perto do fim, onde o sol parecia brilhar apesar do caos em trabalhos de artistas indígenas, como Daiara Tukano e Jaider Esbell.

"Faz Escuro Mas Eu Canto", verso do poeta Thiago de Mello emprestado para dar nome à exposição, casa com a ideia de resiliência dos artistas no estado de trevas do Brasil de Bolsonaro. Também ecoa forte numa Europa às margens da Guerra da Ucrânia, conflito que pode reconfigurar toda a vida de um lugar que há muito tempo não conhecia a inflação descontrolada, onde o ódio de grupos extremistas não desfilava impune por aí.

Essa sensação de alívio entre os artistas e aqueles que não se deixaram seduzir pelo golpismo dos bolsonaristas no Brasil agora contrasta com um estado de apreensão entre os europeus, que ainda nem vislumbram o final dessa guerra.

Os contrastes duros da mostra em versão reduzida agora para o Luma, o megamuseu da megacolecionadora suíça Maja Hoffmann em Arles, ressurgem mais ásperos nesse curto-circuito de leituras. Embora a eleição de Lula não descortine a visão de nenhum paraíso, o escuro que fazia no Brasil parece ter se descolado com força para o outro lado do Atlântico.

E os desenhos, filmes, instalações e performances parecem ganhar força na contraluz, exercícios construídos na sombra para revelar lampejos insuspeitados de ordem e paz.

Os trabalhos de Carmela Gross também abrem a versão francesa da mostra. Mais adiante, as obras em escala de outdoor de Regina Silveira ecoam essa escuridão, mas aquilo que, no caso de Silveira, era uma reação a quente aos últimos suspiros da ditadura militar brasileira agora podem refletir desde o conflito em curso na Europa até mesmo os conchavos dos cartolas em época de Copa do Mundo à beira do deserto no Qatar.

Hélio Oiticica tem ali uma mensagem do exílio traduzida em slides numa tela, aquela que narra os detalhes de sua "Ronda da Morte", o circo de lona preta onde convidados se esbaldariam ao som de música disco sem saber que do lado de fora homens a cavalo preparavam um sequestro —um projeto de performance jamais realizado pelo artista.

Essa é, de fato, uma mostra atravessada por tensões, como não poderia deixar de ser, mas é impossível compactar os muitos atos de drama e descontração espalhados pelo pavilhão paulistano de Oscar Niemeyer para uma única galeria dentro do Luma, uma antiga fábrica de locomotivas repaginada com os mesmos ares industriais pela arquiteta alemã Annabelle Selldorf.

Não é fraco o resultado, só mais condensado, uma amostra potente de artistas, alguns em franca ascensão, que conserva os pilares conceituais ambiciosos da mostra original.

Um ponto alto dessa transposição é o contraste mais acentuado entre os retratos heroicos do abolicionista americano Frederick Douglass, talvez o homem mais fotografado do século 19 nos Estados Unidos, e o filme "Alma no Olho", de Zózimo Bulbul, um curta da década de 1970.

Na entrada da mostra, Douglass se deixa ver em pose de estadista numa sucessão de retratos. No desfecho, está o filme visceral de Bulbul, de uma potência que não se perdeu ao longo das décadas.

Sua sequência de retratos do próprio corpo, das narinas às orelhas, das axilas às nádegas, constrói um painel de humor ácido em celuloide, que vai de uma desconstrução das práticas eugenistas que embasam o racismo estrutural até hoje na raiz da nossa polícia e nosso sistema carcerário ao duro frescor de canções de protesto atuais, uma espécie de um Childish Gambino ancestral, noutra via de mão dupla entre Brasil e Estados Unidos, as duas maiores potências escravagistas na história do mundo.

Preto e branco, as cores e os tons de pele, aliás, se firmam como polos opostos nessas obras. O Brasil e o mundo em frangalhos retratado pela exposição se equilibram no fio da navalha do racismo —o ódio e a violência, artistas aqui parecem dizer, se ancoram nas feridas nunca cicatrizadas de sociedades ainda às voltas com a busca por reparação.

Mas não é só a cor da pele. Outros corpos dissonantes adentram a narrativa como se reclamassem um território.

Seba Calfuqueo, artista chileno não binário, aparece num filme vestindo salto alto e equilibrando um tronco de árvore sobre os ombros. É uma demonstração de virilidade desmantelada pelos calçados coloridos e delicados e o olhar incrédulo dos passantes ao redor.

Em Arles, Calfuqueo, fez uma performance em que trança os cabelos de um longo manto de fios que depois veste e desfila diante do público, como num ato de coroação de uma nova persona.

O gesto equilibra a solenidade, o rigor e a fragilidade na raiz de uma performance altiva.

Esse contraste lembra o fundo negro chapado dos desenhos de plantas e flores de Alice Shintani logo ao lado. A exuberância das pétalas coloridas pode enganar quem não sabe que todas as espécies ali estão em vias de extinção na Amazônia, um alerta geral dado em chave de pura beleza.

O jornalista viajou a convite do Luma

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