Circuito das artes plásticas enriqueceu bilionários e provocou bafafás em 2022

Da polêmica na Documenta de Kassel à explosão de feira, ano teve debates acalorados e aquecimento do mercado

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Gravura de Egon Schiele que foi exposta em 'O Rinoceronte: Cinco Séculos de Gravuras do Museu Albertina' Reprodução

São Paulo

Num ano marcado pelo burburinho ao redor do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e pela reinauguração do Museu do Ipiranga após uma grande reforma —o projeto mais caro da história da Lei Rouanet, que consumiu quase R$ 87 milhões de dinheiro público—, a notícia que mais atiçou o mundo da arte brasileiro foi outra.

Mural no qual foi desenhado um soldado com máscara de porco
Detalhe da obra 'People’s Justice', do coletivo da Indonésia Taring Padi, acusada de antissemitismo - Reprodução

O veto do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, a um conjunto de fotos do Movimento Sem Terra dominou a pauta por semanas, no que foi uma das maiores polêmicas em décadas a engolfar o principal museu do país.

Depois de ser acusado de censurar as imagens, e de negar que essa fosse a intenção, citando uma questão de prazo e logística das obras para o veto inicial, as fotografias acabaram incluídas na exposição "Histórias Brasileiras", a maior do ano no Masp, que ocupou dois andares da instituição com trabalhos que queriam rever o que é ser brasileiro no momento em que o país completou 200 anos de Independência.

Outro episódio que dominou as conversas foi a debandada de artistas da Bienal do Mercosul. Com organização de Marcello Dantas, o tradicional evento de artes de Porto Alegre sofreu para se adequar ao orçamento. Por isso, seis artistas que foram anunciados foram cortados —ou se retiraram— da edição, cujo mote foi a sequência de palavras "Trauma, Sonho e Fuga".

Nessa lista, a dupla "Silêncio Coletivo", formada por Igor Vidor e Jaime Lauriano, decidiu deixar a Bienal, porque o valor acertado para a montagem da instalação "Do Pó ao Pó" não foi cumprido.

Por motivos orçamentários, Maria Lynch, que foi convidada por Dantas para integrar a Bienal, recebeu um desconvite. "Isso aqui é uma montanha russa incendiando. E vem tiro de todos os lados. ‘Life hurts dear’ – ‘a vida dói, querida’, em inglês. Tem que ter couro duro para aguentar", escreveu Dantas ao ser questionado pela artista.

No cenário internacional, a edição da Documenta de Kassel, evento de arte sediado na cidade alemã a cada cinco anos, sofreu um processo de cancelamento, que culminou na renúncia da diretora-geral, Sabine Schormann.

O mural "People’s Justice", ou justiça do povo, concebido pelo coletivo artístico indonésio Taring Padi foi alvo de acusações de antissemitismo. A obra, que chegou a ser coberta e desmontada, mostrava uma figura suína com o capacete escrito Mossad, o serviço secreto israelense, e outra com um judeu ortodoxo portando um chapéu da SS, organização paramilitar nazista.

O naufrágio de Kassel contrastou com a boa recepção da Bienal de Veneza, o evento mais importante das artes junto com a Documenta. A exposição italiana foi marcada pela presença recorde de artistas mulheres e não binários entre os 200 nomes selecionados.

"Quando olhamos as bienais do passado, é estarrecedor ver como sempre foi baixo o número de mulheres", disse a curadora da bienal, Cecilia Alemani, a este jornal. "O fato de haver agora uma maioria delas tem a ver com imaginar um mundo em que o homem branco europeu não esteja no centro."

Quem foi a Veneza se deparou com dezenas de obras sobre a fusão corpo e máquina, os ciborgues, e setores dedicados às pinturas surrealistas e algo aterrorizantes da portuguesa Paula Rêgo —que morreu em junho— e à arte da precariedade da chilena Cecilia Vicunha, que faz grandes instalações com galhos de árvores e fiapos, num alerta à destruição da natureza.

Houve ainda uma presença expressiva de artistas brasileiros, com a participação de Jaider Esbell, Lenora de Barros, Luiz Roque, Rosana Paulino e Solange Pessoa.

Os principais museus do mundo também sofreram com os ataques às obras de arte. Para chamar a atenção para a causa ambiental, grupos de militantes danificaram telas de Van Gogh, Monet e Vermeer. Tudo começou no Reino Unido, com o grupo Just Stop Oil —algo como só parem de usar petróleo.

Em outubro, eles chegaram a jogar sopa em "Girassóis", um dos principais quadros de Van Gogh, em exposição na National Gallery, em Londres. Protestos similares foram registrados em outros países. Na Itália, por exemplo, ativistas do Ultima Generazione colaram as suas mãos, em julho, na tela "A Primavera", de Sandro Botticceli, em exibição na galeria Uffizi, em Florença.

No Brasil, a discussão sobre a representatividade nas artes foi puxada pelo centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, com uma série de mostras revisionistas daquele período a ocuparem diversos espaços de São Paulo.

O Theatro Municipal, palco do evento original, foi talvez o mais emblemático, por ter recebido a primeira exposição de arte desde 1922. "Contramemória" tinha uma maioria de artistas negros, indígenas e mulheres, questionando o papel central que o homem branco teve na exposição do início do século 20.

Já o Instituto Tomie Ohtake, recebeu uma das exposições internacionais mais aguardadas do ano, "O Rinoceronte: Cinco Séculos de Gravuras do Museu Albertina" contou a história da arte ocidental a partir do acervo da famosa instituição vienense. Com obras de Albrecht Dürer a Picasso, a mostra abrangeu o período entre 1466 a 1991 em 154 gravuras.

Judith Lauand, primeira artista concretista do Brasil, também completou cem anos em maio e ganhou uma grande retrospectiva, ainda em exposição no Masp. Mas não teve a oportunidade de visitar a mostra —morreu no início de dezembro, deixando um legado expressivo da presença feminina num círculo artístico de poderio masculino.

Fora das instituições, 2022 marcou o retorno pós-pandemia de todo o circuito de feiras. Em São Paulo, antes dominada pelas duas edições anuais da SP-Arte, surgiram mais dois eventos comerciais, a Art Sampa, uma filial local da Art Rio, e a ArPa, congestionando o calendário e exigindo do bolso dos colecionadores.

O boom local parece estar em sintonia com o mercado global. Segundo um estudo publicado em novembro pelo banco UBS e pela feira Art Basel, cada colecionador de alto poder aquisitivo nos principais países consumidores de arte gastou em média cerca de R$ 925 mil em obras só no primeiro semestre de 2022. A cifra é maior do que a de todo o ano passado —R$ 843 mil — e de 2019, antes da pandemia —R$ 514 mil.

Por fim, São Paulo ganhou o Museu do Ipiranga todo reformado, depois de uma briga entre o governo estadual e o federal. Aos cofres públicos, a revitalização do museu custou R$ 235 milhões e, parte dos 3.500 dos objetos agora em exposição, nunca foram exibidos ao público.

Em dado momento, o secretário de cultura e economia criativa, Sérgio Sá Leitão, chegou a denunciar uma suposta apropriação da obra pelo bolsonarismo.

"É um absurdo que o governo federal se arvore para tentar capitalizar em cima da entrega do Museu do Ipiranga, sendo que o governo federal não fez absolutamente nada para que isso acontecesse, a não ser sua obrigação de disponibilizar os incentivos fiscais da Lei Rouanet", disse.

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