Conheça Bruno de Sá, cantor de ópera com registro de voz mais fina para um homem

Sopranista tem uma laringe menor do que a média dos homens e cordas vocais com elasticidade incomum

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São Paulo

Bruno de Sá, de 33 anos, tem uma laringe menor do que a média dos homens. Suas cordas vocais têm uma elasticidade incomum e, logo na infância, ele identificou em visitas médicas um desequilíbrio nos hormônios masculinos. Dono de uma voz rara, Sá é sopranista, cantor lírico com o registro de voz mais agudo possível para um homem.

O sopranista Bruno de Sá na ópera 'Alessandro nell'Indie', de Vinci - Clemens Manser

Seu timbre é também o resultado de uma combinação genética. A fala de seu irmão, por exemplo, soa muito parecida com a sua. "Não sou alienígena, mas tenho uma voz de mulher num corpo masculino", diz Sá, durante um café, em São Paulo.

Ele lançou em setembro "Roma Travestita", pelo selo Erato, e, nesta sexta-feira (16), apresenta o repertório do disco num concerto no Theatro São Pedro. Ao chegar para a entrevista, Sá pediu para que desligassem o ar-condicionado do ambiente, enquanto sorvia, em golinhos, um copo de água morna.

Desde que chegou ao país, o cantor está atarantado com as mudanças no tempo de São Paulo, uma ameaça constante à sua preciosa laringe. Loquaz, Sá não esconde o nervosismo ao voltar a um dos palcos que revelou seu talento. Afinal, os melômanos daqui cultivaram certa expectativa para o concerto do cantor brasileiro do momento.

A imprensa internacional se derrete por ele. "É uma voz de ouro líquido, com agudos estratosféricos", disse o jornal francês Le Monde. Quando lançou o álbum, lá estava o brasileiro, estampado em duas páginas da prestigiosa Opera Magazine.

Se fechar os olhos, o público pode confundi-lo com uma mulher. Não por acaso, Sá tem a mesma extensão vocal de uma soprano. Mas, em termos de timbre, ele mesmo admite que a aproximação com a voz feminina não é tão precisa.

O cantor soa sobretudo andrógino, entre o feminino e o infantil, tanto que algumas das partes constitutivas de seu aparelho fonador não mudaram desde os primeiros anos de vida. O sopranista, porém, não se confunde com o contratenor, registro vocal mais comum para designar cantores com timbre agudo.

Embora a diferença seja audível, não há uma justificativa de fato para a emissão de sons tão distintos. Ao contrário do contratenor, que na origem é tenor ou barítono, o sopranista não canta a partir de um falsete —técnica em que o artista emite notas mais agudas do que o natural. Ou seja, a voz de um sopranista já é aguda na fala cotidiana.

A raridade é tanta que ele só tem notícia de outros dois sopranistas em atividade, o venezuelano Samuel Mariño e o hondurenho Denis Orellana. "O sopranista virou um fetiche", afirma. "Toda semana, recebo mensagens de pessoas dizendo que se identificam comigo, porque são sopranistas também, e eu digo: ‘Não, amado, não.’"

A gravação de "Roma Travestita" selou a projeção internacional do cantor. O disco, contudo, espelha a relação ambígua que mantém com seu repertório. No Brasil, ele conta, não conseguiu entrar no círculo da música barroca, restrito às mesmas pessoas de sempre.

Ao mesmo tempo, se acostumou a cantar papéis femininos do período clássico ou romântico, uma possibilidade para seu tipo vocal. Só na Europa teve oportunidades na música antiga, o que passou a ser outro incômodo. Afinal, homens com timbre agudo são logo tidos como contratenores e encerrados no repertório barroco.

Para "Roma Travestita", Sá escolheu treze árias pouco conhecidas desse período —oito sendo gravadas pela primeira vez. Entre os compositores executados pelo grupo Il Pomo d’Oro, estão Antonio Vivaldi, Alessandro Scarlatti e raridades de Nicola Conforto.

Como o próprio nome do álbum sugere, Sá volta à época em que as mulheres eram proibidas de cantar em Roma. Sendo assim, os papéis femininos na ópera foram assumidos pelos castrados —ou "castratti", em italiano—, meninos que sofriam o corte dos testículos, para manter a tessitura vocal aguda. Entre os séculos 16 e 18, os castrados eram divindades, estrelas cultuadas pela população europeia. Em geral, os contratenores interpretam, hoje, os papéis que eram antes dos castrados.

Nascido em Santo André, no ABC Paulista, Sá sempre esteve rodeado pela música. Todos os seus tios cantam e seus pais, um metalúrgico aposentado e uma funcionária pública, se conheceram num culto da Igreja Assembleia de Deus. Ali, Sá se apresentou pela primeira vez, aos dois anos, cantando música gospel.

Tempos depois, se mudou para Ibitinga, também no interior de São Paulo, e teve aulas de piano e clarinete. Na adolescência, decidiu estudar para ser professor de música. Em 2013, ingressou na Universidade de São Paulo, a USP, para fazer bacharelado em canto.

No mesmo ano, assistiu, pela primeira vez, a uma ópera —até então, Sá cantava música popular. Quatro anos depois, ele se mudou para Basel, na Suíça, onde aperfeiçoou a técnica de canto lírico. Desde 2020, mora em Berlim.

Há quatro anos, Sá comparece ao Festival de Música Barroca de Bayreuth, onde atuou, em 2020, numa montagem de "Carlo, Il Calvo", de Nicola Porpora. Ele também destaca seu protagonismo em uma obra contemporânea, criada em 2019, "A Pequena Sereia", do americano Jherek Bischoff, e em "Alessandro nas Índias", de Leonardo Vinci —não confundir com o autor da Mona Lisa.

"Realizei o sonho de muita gente, interpretando a sereia, mas tomo cuidado para não virar um circo", diz ele. "Não quero que a minha androginia seja peça de um marketing vazio."

Agora que Sá se tornou famoso na Europa, ele divide palco com referências de toda a vida, os contratenores Philippe Jaroussky e Jakub Jozef Orlinski, com quem cantou o "Stabat Mater", de Pergolesi, em agosto passado. "Zerei a vida quando Jaroussky passou a ir até a minha casa para comer pão de queijo", afirma Sá, que gosta de passar o tempo livre cozinhando.

Com "Roma Travestita", Sá se projeta no repertório barroco, como esperado pelo mercado. No início do mês, fez um concerto na Sala dos Espelhos, do Palácio de Versalhes. Em 2023, subirá ao palco do Théâtre des Champs-Elysées, em Paris. Nos próximos dois discos previstos no contrato, ele pretende expandir o repertório.

"Nesse tempo todo, eu não quis gravar um disco, porque precisei provar que podia cantar", diz. "Nasci num país em que você incentiva uma criança a jogar bola, mas nunca cantar, e se um menino canta agudo, precisa cantar ‘que nem homem’."

Bruno de Sá - Roma Travestita

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