Descrição de chapéu

Guerra da Ucrânia e sons de Anri Sala se chocam com arquitetura em Paris

Exibição do artista albanês, nome relevante da arte atual, marcou o fim de ano europeu na Bourse de Commerce

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Paris

O abismo dos pássaros é a solidão do espaço infinito. É numa estação espacial abandonada que o solo de clarinete batizado assim por Olivier Messiaen toca numa vitrola para ninguém. Sua companhia eventual é um solo de saxofone de Ronald McNair, parte de outra música composta para o fim dos tempos.

O francês Messiaen imaginou sua composição quando preso na invasão nazista de seu país na década de 1940 e pensava que a estreia em plena cadeia, para detentos e carcereiros, seria a primeira e última chance de ouvir em vida aquela sua tradução sonora para um mundo que agonizava bem diante de seus olhos.

Uma mulher observa a projeção de um vinil
A obra 'Time No Longer', de Anri Sala, tem cinco canais de som e luzes dinâmicas - (Andrea Rossetti/Divulgação)

O americano McNair, músico e astronauta, morreu na explosão do foguete Challenger, na década de 1980, pouco mais de um minuto depois da decolagem. A tragédia calou o artista, que pretendia ser o primeiro a gravar sons no espaço, e deixou um silêncio aterrador na equipe da Nasa que assistia ao acidente.

Essas músicas se chocam agora num mesmo vinil, girando numa vitrola que flutua atravessando salas alheias à gravidade. O artista albanês Anri Sala, um dos nomes mais relevantes da arte atual, imaginou esse encontro sonoro num filme agora projetado numa gigantesca tela curva na rotunda da Bourse de Commerce, o museu de arte contemporânea do magnata do luxo e da moda François Pinault, no coração de Paris.

Sala, na instalação organizada pela francesa Emma Lavigne, mostra o vazio diante do vazio. O espaço monumental do antigo palácio do comércio se esvazia por completo, a não ser a visão de sua vitrola solitária a voar pelo espaço e as rajadas de luz que coroam os frisos do prédio em sintonia com os assaltos da música.

Essa obra, "Time No Longer", virou uma espécie de sensação na temporada de outono da arte na Europa, e um dos mais sofisticados trabalhos a ocupar o espaço do museu que estreou com uma enorme escultura de cera do suíço Urs Fischer que derretia diante dos olhos do público, em chamas, como uma vela feita estátua grega.

Mas Sala, um dos primeiros nomes a escapar da cortina de ferro da antiga União Soviética e ganhar os grandes museus do mundo depois do colapso do bloco, agora parece ecoar um novo conflito que apavora o planeta —o fim dos tempos, com a Guerra da Ucrânia ainda em curso às portas de um inverno que promete ser cruel, pode estar mesmo logo ali.

Toda a obra desse artista, aliás, é uma reflexão sobre o poder da memória ancorada na arquitetura, lembranças atravessadas pelo som dentro de espaços bem delimitados e pela forma que esse som atravessa o corpo. É a música abstrata ou concreta como alicerce físico dos nossos sentimentos, tal qual nos comportamos entre as quatro paredes de um prédio ou de uma casa.

Impossível não lembrar "Answer Me", ausência notável em sua retrospectiva parisiense. No filme, um casal discute a separação. As palavras dela são murmúrios abafados pela ruidosa bateria que ele toca, tudo isso dentro do domo construído por Buckminster Fuller em Berlim, a central de espionagem dos Aliados para interceptar o tráfego radiofônico vindo do campo dos inimigos, uma ameaça à espreita.
Amores, traições, vida e morte são atrelados mais do que tudo ao som e ao espaço construído nas obras de Anri Sala.

O tambor que toca sozinho numa cena isolada do filme da separação ressurge num canto da Bourse de Commerce, um autômato também solitário, que reage aos passantes. As baquetas, na verdade, se movem de acordo com a vibração de sons inaudíveis para os humanos, a trilha sonora de outra exposição de uma década atrás que ronda, como fantasma, essa reencarnação —mais uma vez a memória, o corpo, o som e a arquitetura.

Instrumentos que assumem vontade própria, que tocam sozinhos como a vitrola flutuante do primeiro filme e a bateria esquecida num canto, formam, de certa maneira, a base e raiz conceitual da mostra.

Noutra galeria, dois pianos parecem se confrontar. Um toca a "Marselhesa", o hino da França nascido dos escombros e das entranhas da Revolução Francesa. O outro toca "A Internacional", a canção marca do socialismo global que teve sua melodia enquadrada nas notas do tema francês, numa projeção de desejos revolucionários para muito além dos muros de Paris.

O filme dos pianos se deixa ver em projeções duplas em telas também curvas que formam uma quase espiral. A imagem e o som são eles também parte estruturante da obra, como um filme-escultura repaginado para o espaço circular do novo museu.

Sala alerta para o fato de toda a história ser um eterno retorno, ao caos e depois à ordem. O mundo lá fora sugere que agora estamos na fase do caos, um caos de raízes profundas fincadas no passado.

Desenhos do artista mostrados em vitrines ao redor da rotunda, tal qual os antigos museus de história natural fariam com espécimes raros, ecoam e desancam a antes triunfal narrativa colonialista que motivou, em primeiro lugar, a construção desse prédio.

Enquanto o enorme afresco da cúpula mostra as conquistas do comércio global no apagar das luzes do século 19, ou seja, uma celebração da exploração do Ocidente sobre as suas colônias, Sala desenha peixes e mapas que se contorcem para caber numa página quase sempre pequena demais.

É o retrato da arquitetura exígua que se fecha sobre nós ao som das rajadas sonoras do vinil no espaço, dos pianos desencontrados e também das rajadas de balas num território não muito distante do esplendor desse palácio parisiense.

O jornalista viajou a convite da Bourse de Commerce

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.