Ulrich Alexander Boschwitz nasceu em 1915 em Berlim e deixou seu país natal em 1935, dois anos após a chegada de Hitler ao poder. Entre 1935 e 1939, ele passou por Noruega e Suécia até se instalar na Inglaterra, de onde acabou deportado por ser um "inimigo estrangeiro" —embora a própria Alemanha já não considerasse os judeus como seus cidadãos.
Após um tempo preso na Austrália, ele foi autorizado, em 1942, a retornar a Londres, mas o navio em que viajava foi atingido por torpedos alemães. O jovem escritor morreu aos 27 anos.
A história de vida de Boschwitz parece uma anedota cruel inventada para ilustrar o destino dos judeus alemães na década de 1930. Embora tenha deixado o país ainda cedo na trajetória do genocídio, ele foi condenado a vagar pela Europa e acabou morto pelo regime nazista, apesar de todos os seus esforços para sobreviver a ele.
A sensação de aprisionamento e a futilidade final da fuga é o tema de "O Passageiro", livro escrito por Boschwitz na Inglaterra e que passou décadas desaparecido, até ser redescoberto em 2017 nos Arquivos do Exílio da Biblioteca Nacional Alemã em Frankfurt. A obra chega ao Brasil pela DBA Editora, com tradução de Gisele Eberspächer.
O romance se passa nos primeiros dias após a Noite de Cristal, primeiro grande "pogrom" do governo nazista, e acompanha Otto Silbermann, um judeu burguês abastado que vê sua vida mudar drasticamente. Silbermann salta de trem em trem pela Alemanha numa tentativa de escapar do país enquanto pondera a indignidade de todas as suas opções.
O tempo da ação é central para a trama e uma raridade dentro das grandes obras da literatura do Holocausto. Enquanto os testemunhos mais famosos relatam a experiência do campo de concentração, há poucas obras que exploram os anos anteriores e a caminhada gradual da violência e do extermínio.
Nas primeiras páginas de "O Passageiro", o leitor encontra um Silbermann ainda livre, mas que precisa compreender que já não é mais visto como um ser humano pelos seus conterrâneos e que, do dia para a noite, não pode mais contar com as estruturas da lei e do Estado como vinha fazendo durante toda sua vida.
Ao longo das páginas seguintes, leitor e protagonista mergulham em reflexões acerca do que essa mudança de estado significa e também de como ela foi possível. Como homens que até ontem eram amigos de Silbermann agora o veem como subumano? Como pessoas comuns deixam de enxergar o outro de forma tão radical?
Esse quadro é ao mesmo tempo o que o romance tem de mais contemporâneo e seu ponto mais fraco, já que muitas vezes a tentativa de Boschwitz de pensar a mentalidade da Alemanha nazista e o processo psicológico dos perseguidos vem às custas da fluidez literária e os diálogos e personagens soam didáticos e um tanto artificiais.
Por outro lado, os melhores momentos do livro são quando ele assume ares de thriller psicológico e pede ao leitor de hoje que se transporte para um momento em que as narrativas de campo ainda não eram populares —e a própria "solução final" ainda estava a quatro anos de distância.
Em diversos momentos, as hesitações de Silbermann parecem irritantes ou mesquinhas, sua preocupação em sobreviver sem nenhum dinheiro na Bélgica inocente frente ao que sabemos que é a realidade de lugares como Auschwitz ou Dachau.
Mas Boschwitz restaura um senso de perspectiva e causalidade. A estrada que levou às câmaras de gás começou muito antes, quando Silbermann deixou de ser visto como um homem por aqueles ao seu redor, quando o direito a um lar e à proteção da lei foram negadas a eles.
Às vezes, a urgência compreensível de Boschwitz em comunicar esse ponto custa a ele o valor estético da obra, mas, em outros momentos, quando o estilo da narrativa e o desespero da situação se encontram, "O Passageiro" se torna uma das obras mais esclarecedoras de um período muito relatado e pouco compreendido.
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