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Antissemitismo no Brasil do Estado Novo é revisto em história de casal judeu

Hans e Elisa Glasberg se refugiaram no Brasil e têm trajetória contada em livro escrito pelo filho

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São Paulo

Hans e Elisa se conheceram no navio que os trazia ao Brasil. Ele era alemão de Berlim; ela, austríaca de Viena. Chegaram a Santos em fevereiro de 1941, já durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). E eram refugiados judeus.

O excepcional na história de ambos é que conseguiram deixar legalmente a Europa num período em que as políticas segregacionistas permitiam que os judeus fossem transportados, no máximo, até os campos de extermínio nazistas. Foi esse o bilhete sem volta das vítimas do Holocausto.

Pois bem, Hans e Elisa se casaram em 1942 em São Paulo, e o filho único que tiveram, o jornalista Rubens Glasberg, publica agora pela editora Terceiro Nome a biografia "Os Indesejados", que é bem mais que uma história familiar. É um relato precioso em detalhes da política e do antissemitismo no Brasil do Estado Novo e na Europa posterior à Primeira Guerra.

O ditador Getúlio Vargas, em foto sem data, registrada em 'Imagens do Estado Novo - 1937 a 1945', de Eduardo Escorel - Divulgação

Em resumo, Elisa Klinger, seu nome de solteira, conseguiu deixar a Europa porque ela e os pais foram 3 dos 473 "católicos não arianos" —eufemismo para judeus em grande parte com atestados falsos de conversão ao cristianismo— que receberam vistos diplomáticos assinados, meio à revelia de Getúlio Vargas e do Itamaraty, por Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador brasileiro em Paris.

O caso de Hans Glasberg é ainda mais pitoresco. Ele foi um dos beneficiados por um protocolo que Getúlio aceitou firmar com o papa Pio 12 para permitir a entrada no Brasil de um grupo reduzido de "israelitas católicos", denominação de judeus convertidos ou cristãos nascidos de casamentos mistos —todos eles, por via das dúvidas, criminosamente perseguidos pelo Terceiro Reich.

O futuro casal cruzaria com personagens generosos no caminho de fuga para o exílio. Elisa e seus pais foram abrigados numa cidadezinha da França, por um ano, pelo prefeito católico e sua família, cuja discrição os protegeu mesmo após a chegada das tropas alemãs.

Foram ainda agraciados pela ação de uma ex-enfermeira que se tornou prostituta e, por penitência, ajudava os necessitados como membro da Resistência. Dela, fuzilada antes do fim da guerra, não se tem o nome ou outros detalhes biográficos.

Por fim, parte da alta hierarquia católica atuava para discretamente permitir que o maior número de judeus pudesse deixar a Europa, Foi o caso dos arcebispos de Lyon e de Marselha, que, juntamente com o representante do Vaticano em Vichy —para onde foi transferida a capital da França na época— fizeram a ponte entre a família judaica e a embaixada do Brasil, também instalada na pequena cidade.

O embaixador Souza Dantas é um caso especial. Perdeu o cargo por ter emitido os passaportes não autorizados. Entre seus perseguidores há os personagens com o perfil do espírito de porco, antissemitas e simpatizantes do nazismo. Entre eles, o ministro da Justiça do Estado Novo, Francisco Campos, e o embaixador brasileiro em Berlim, Ciro de Freitas Valle.

Em tempo, Geza Klinger, o pai de Elisa, que fora industrial de curtumes e calçados na Áustria, quando refugiado na França patrocinou pessoalmente a viagem ao exílio de 30 parentes para a Argentina.

Hans Glasberg também foi beneficiado por boas almas. Estudante de medicina cuja carreira foi interrompida por Adolf Hitler, ele se refugiou na Itália, onde o fascismo de Mussolini era de início menos intolerante com os judeus, quadro que se modificou em 1938. Hans se tornou um "israelita católico" ao ser auxiliado por diplomatas brasileiros e membros da hierarquia da igreja italiana.

Na Alemanha dos Glasbergs a ascensão do nazismo, em 1933, desembocou no antissemitismo como política de Estado que daria na Noite dos Cristais —assassinatos e destruição de lojas e sinagogas—, em 1938, e por fim no genocídio nas câmaras de gás.

O susto dos Klingers foi bem maior, porque só em 1938 a Áustria foi anexada ao Terceiro Reich e adotou uma legislação antissemita. Num cidade como Viena, em que um décimo da população era judaica, o censo de 1934 indicou que eram judeus 85% dos advogados, 52% dos médicos e 73% dos industriais da tecelagem. O antissemitismo era professado abertamente por partidos políticos da direita, sem ser, no entanto, diretriz oficial.

E o Brasil? Pois dois decretos de Getúlio de 1938 vetavam a imigração judaica, em nome implícito de um projeto eugenista que definia quais as "raças" indesejadas para o projeto da nacionalidade branca e cristã.

A Ação Integralista Brasileira, de Plínio Salgado, tinha uma ala antissemita e germanófila, chefiada por Gustavo Barroso —que, por coincidência, era passageiro, entre Lisboa e Rio de Janeiro, do mesmo navio que trouxe a Santos o futuro casal Glasberg.

Hans morreu em 1968, e Elisa, em 1998.

Os Indesejados

  • Autor Rubens Glasberg
  • Editora Terceiro Nome
  • 200 págs R$ 54
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