'Thriller' de Michael Jackson faz 40 anos após afrontar racismo da indústria musical

Disco mais vendido da história volta ao top 10 da Billboard e ganha edição caprichada cheia de faixas extras

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O cantor norte-americano Michael Jackson posa para foto durante gravação do videoclipe 'Thriller' AFP

São Paulo

Demorou um ano e meio para que a MTV, que foi ao ar nos Estados Unidos, em 1981, exibisse um videoclipe de um artista negro. Isso num canal de TV que ia ao ar 24 horas por dia. Quem quebrou essa barreira foi "Thriller", de Michael Jackson, que acaba de completar 40 anos.

E a decisão não foi tomada por conta do absurdo indiscutível que era um canal de TV só exibir uma programação musical sem artistas negros na sua grade. Foi por exigência do público.

Cena do videoclipe 'Thriller', do cantor Michael Jackson
Cena do videoclipe 'Thriller', do cantor Michael Jackson - Optimus Productions/The Kobal Collection

A MTV estreou em 1º de agosto de 1981. O primeiro clipe a ir ao ar foi "Video Killed the Radio Star", do duo britânico The Buggles. No Brasil, aonde a MTV chegou só em 1990, o primeiro videoclipe a ir ao ar foi um remix de "Garota de Ipanema", de Marina Lima.

No mesmo dia, gente como a cantora americana Pat Benatar, o roqueiro inglês Rod Stewart, a banda inglesa The Who, o cantor britânico Cliff Richard, a banda anglo-americana The Pretenders, as bandas americanas REO Speedwagon e Styx, a canadense April Wine, os ingleses Phil Collins e Iron Maiden, The Specials e The Selecter apareceram na programação. Só as duas últimas tinham integrantes negros.

Nenhum desses artistas acima vendeu tanto quanto "Off The Wall", o álbum anterior de Michael Jackson, de 1979 —foram 45 milhões de cópias no mundo, 10 milhões só nos EUA. É um dos mais bem-sucedidos de todos os tempos, com hits como "Don’t Stop ‘Til You Get Enough" e "Rock With You".

Ambos tiveram seus próprios videoclipes, assim como a balada "She’s Out of My Life". Nesta que foi a primeira colaboração de Michael com o produtor Quincy Jones, artistas como Paul McCartney e Stevie Wonder foram convidados para fazer músicas para o disco. Mas a MTV ignorou.

A emissora até tinha um VJ negro, J.J. Jackson, vulgo Triple J. Ele era apaixonado por rock desde o fim dos anos 1960 e era dele o crédito de ter trazido aos EUA o som dos ingleses do The Who e do Led Zeppelin.

Na época, e até hoje, o rock é a desculpa mais usada para justificar a ausência de artistas negros no canal. "A MTV foi originalmente criada para ser um canal de rock", disse Buzz Brindle, ex-diretor de programação de música da TV americana à revista Jet, em 2006. "Era muito difícil para a MTV encontrar artistas afro-americanos cujas músicas se encaixavam no nosso formato."

Um dos fundadores da MTV, Les Garland, disse à mesma revista que "não tinha de onde tirar um clipe de negro. Metade do meu tempo no começo da MTV era gasto convencendo artistas a fazerem videoclipes e gravadoras a pagar por eles".

No entanto, Michael Jackson dançava e cantava, de smoking e gravata borboleta preta e cabelo afro, no clipe de "Don’t Stop ‘Til You Get Enough", de 1979. Essa foi a primeira música que compôs e produziu em sua vida adulta, e pela qual ganhou seu primeiro Grammy.

Não é um rock, isso é verdade, é disco. Mas ficou em primeiro lugar na lista Hot 100 da revista Billboard, que por décadas foi a principal forma de medir o sucesso de um artista ou de uma canção. Difícil acreditar que um dos fundadores da MTV, assim como seu diretor de programação musical, não soubesse disso.

A miopia racial não era exclusividade da TV. Em 1980, Michael Jackson, já um dos artistas mais bem-sucedidos da história, procurou a revista americana Rolling Stone, também dedicada à música, e perguntou se eles estavam interessados em publicar uma edição com ele na capa. A revista recusou. "Um dia vocês vão implorar por uma entrevista minha. Talvez eu dê, talvez não", respondeu ele.

Ele já tinha sido capa da publicação em abril de 1971, quando, ainda pré-adolescente, era o vocalista principal do grupo The Jackson Five, com quatro de seus irmãos mais velhos. A banda havia sido criada pelo pai dos meninos, Joe Jackson, em 1964. Na foto da revista, o garoto sério olha desconfiado e uma chamada com letras brancas aplicadas em cima de seu cabelo afro diz: "Por que esse menino de 11 anos fica acordado até tão tarde?".

No texto, o jornalista Ben Fong-Torres parecia genuinamente espantado com aquela criança com jeito de adulto que cantava afinado e com uma potência vocal arrebatadora. Ele descreve um show em que Michael diz para o público que canta o blues tão bem porque teve seu coração partido por uma menina que conheceu no tanque de areia de um parquinho.

É fácil e algo covarde julgar as atitudes tomadas por outras pessoas no passado, com a cabeça do tempo presente. Qualquer um que tenha trabalhado ou colaborado em revistas brasileiras entre os anos 1980 e a década de 2000, até bem recentemente, reconhece uma frase preconceituosa de autoria desconhecida, repetida desde editores até donos de bancas —"Preto na capa não vende". Certamente um dito semelhante corria as redações e as salas de produção das revistas, jornais e TVs americanos.

Mas eis que chegou "Thriller", no final de 1982, e as máximas racistas reproduzidas como meros fatos do capitalismo tiveram que ser repensadas. Com o som que virou a marca de Michael, uma mistura de funk e disco, com elementos de pop, rock e uma pitada de soul, o álbum foi sucesso instantâneo de público e crítica, direto para o topo da parada da Billboard.

Venceu oito prêmios Grammy, incluindo o de disco do ano. Demorou só um ano para que chegasse à sua marca mais impressionante, a do álbum mais vendido de todos os tempos.

O guitarrista Eddie Van Halen, da banda americana de hard rock Van Halen, que é branco, foi convidado para tocar em "Beat It". O ator americano de filmes de terror Vincent Price, também branco, foi convidado para declamar um pequeno monólogo no final da canção "Thriller", que termina com uma risada demoníaca dele.

Paul McCartney colabora mais uma vez, agora com os vocais em "The Girl Is Mine". Mas não foi por causa nem de um, nem de outro, que "Thriller" rompeu as barreiras impostas pelo racismo da indústria do entretenimento americana.

Foi mérito mesmo, para usar o nome politicamente correto para se referir ao pé na porta que costuma marcar os primeiros atos de resistência das minorias. Foi assim com Oprah e Barack Obama.

"Thriller" era simplesmente bom demais demais para que os executivos e jornalistas pudessem se dar o luxo de fingir que não existia. A partir de janeiro de 1983, os singles começaram a ser lançados, mas foi "Billie Jean" o primeiro videoclipe de um artista negro a entrar na programação da MTV, no mesmo dia em que foi exibido para os executivos da emissora, segundo o cofundador do canal, Les Garland.

Não é essa a história contada pelo presidente da gravadora CBS na época, Walter Yetnikoff, morto em agosto de 2021. Ele disse em diversas entrevistas que teve que ameaçar tirar todos os videoclipes de outros artistas da gravadora da programação para conseguir que "Billie Jean" fosse ao ar.

Seja como for, "Billie Jean" chegou para mudar tudo. O clipe foi exibido em todos os horários, em todos os programas, a pedido da audiência.

Nele, Michael anda pelas ruas sujas e escuras de uma rua vestindo sapato de duas cores, meia branca, calça e blazer de couro pretos, camisa branca e gravata borboleta vermelha. Ele é perseguido por um detetive particular, que tira fotos dele, supostamente para provar que é ele o pai da tal criança, filha da tal Billie Jean, que "is not my lover", como diz o refrão.

No mês seguinte, o clipe de "Beat It" foi lançado, uma produção mais ousada, com mais atores e dançarinos simulando uma briga de gangues. Michael surge depois, deitado numa cama de solteiro num quarto simples, cantando, furioso. Em seguida se levanta, veste uma jaqueta de couro vermelha e sai dançando e cantando primeiro pelo corredor do prédio, depois na lanchonete, para enfim se juntar a uma das gangues e liderá-la numa batalha dançante.

Enquanto Michael Jackson crescia com o sucesso de "Wanna Be Startin’Somethin’", "Human Nature", "P.Y.T. (Pretty Young Thing)" —músicas lançadas entre maio e setembro de 1983—, as portas da emissora foram abertas de maneira definitiva para que outros artistas negros emplacassem seus trabalhos na TV, e, consequentemente, no mainstream. Uma história com cara de ter 200 anos, mas só tem 40.

E que culminou no último mês de 1983, quando Michael Jackson lançou um curta metragem para a música "Thriller", com 14 minutos de duração e o orçamento mais alto para um videoclipe até então. O sucesso foi tanto que "Thriller" foi lançado em VHS para venda no varejo, outro mercado em que quebrou recordes de vendas.

Michael Jackson viveu só mais 25 anos depois de mudar o mundo. Morreu aos 50, no dia 25 de junho de 2009, em decorrência de uma overdose do anestésico propofol, em sua casa em Holmby Hills, nos arredores de Los Angeles, alugada do ator Sean Connery.

Tinha deixado Neverland, o rancho a 200 km de Los Angeles em que construiu sua casa dos sonhos, e onde morou entre 1988 e 2005, quando se mudou de lá por conta de uma história que tem pouco ou nada a ver com o disco mais vendido de todos os tempos —que faz 40 anos com corpinho de 20.

Erramos: o texto foi alterado

As músicas "The Girl Is Mine", "Wanna Be Startin’ Somethin’", "Human Nature", "P.Y.T. (Pretty Young Thing)" do álbum "Thriller" não tiveram clipes próprios exibidos na MTV. As bandas The Specials e The Selecter tinham integrantes negros. O texto foi adaptado.

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