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Com Rosana Paulino, Ana Maria Gonçalves subverte a opressão

'Um Defeito de Cor', que ganha nova edição com ilustrações, é um romance do qual não se sai da mesma forma que se entra

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Fernanda Miranda

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal da Bahia e doutora em letras pela Universidade de São Paulo

Salvador

Aprendemos com Saidiya Hartman que a ação do verbo fabular é encantatória. O encanto se materializa na possibilidade de espantar para longe o "mal de arquivo", a negação sistemática da vida negra no tempo e na história.

Como uma teoria de fundamento negro, a fabulação crítica inspira comunidades e comunicabilidades amplas e está alinhada, por exemplo, ao signo Sankofa, que nasce de um provérbio tradicional entre os povos de língua akan da África Ocidental, em Gana, Togo e Costa do Marfim, e cuja tradução é algo como "não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu".

Como um símbolo adinkra, Sankofa pode ser representado como um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando em seu bico um ovo —o futuro.

Obra de Rosana Paulino que ilustra a nova edição de 'Um Defeito de Cor' publicada pela Record - Rosana Paulino/Divulgação

Na literatura brasileira de autoria negra existe uma longa tradição de composição estética do tempo que encontra na teoria de Hartman uma justa nomeação e que, por sua vez, remete ao pássaro Sankofa seu desenho magistral.

Desde Maria Firmina dos Reis a Eliana Alves Cruz, as relações entre ficção e a escrita da história ultrapassam as fronteiras das disciplinas e apontam para uma terceira margem, que reconta o Brasil a contrapelo, a partir da imaginação e experiência negras.

"Quando não souberes para onde ir, olha para trás e sabe pelo menos de onde vens."

Nessa perspectiva, talvez nenhuma obra tenha sido tão instigante como "Um Defeito de Cor", de Ana Maria Gonçalves. Não por acaso, todo o romance é costurado por provérbios africanos a cada capítulo que se abre.

A narrativa se volta para o passado, mas o gesto que o romance provoca não é apenas na direção do texto histórico, pois é sobretudo com o tempo presente que as palavras se irmanam, este tempo, "afropresentista" e de igual modo desafiador, trabalha o futuro como uma argamassa viva do agora, prenhe desse instante e, por isso mesmo, aberto às possibilidades.

Nas palavras exatas de Saidiya Hartman no ensaio "Vênus em Dois Atos": "Conforme eu a entendo, uma história do presente luta para iluminar a intimidade da nossa experiencia com as vidas dos mortos, para escrever nosso agora enquanto ele é interrompido por esse passado e para imaginar um 'estado livre', não como o tempo antes do cativeiro ou da escravidão, mas como o antecipado futuro dessa escrita".

"Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje."

Lançado em 2006, "Um Defeito de Cor" ganhou uma edição muito especial este ano, com as artes de Rosana Paulino permeando as páginas e os meandros de Kehinde, personagem africana que é uma poderosa tradutora da experiência nacional e da própria diáspora negra.

Ao abrir o livro, encontramos a obra da artista costurando em tecido imagens de rostos negros alinhados em uma trama única, o que parece em si já performar a elaboração narrativa que Gonçalves constrói para seus personagens, que, antes de serem personagens com nome, história, laços familiares, crenças, esperanças e parentes, eram apenas vestígios de um arquivo histórico falho e violento.

O encontro entre Ana Maria Gonçalves e Rosana Paulino, duas imensas criadoras, é também o encontro entre palavra escrita e arte visual e tudo que isso provoca e produz em termos de um sistema representativo negro interartes.

É o encontro entre poéticas da memória e entre a viabilidade imaginativa como transfiguração do arquivo de ausências que configurou não somente nosso cânone literário como a história das artes no Brasil. Desse encontro de águas marítimas, o romance se verte ele próprio em um cais —um lugar, uma paragem, um porto, do qual não saímos nunca da mesma forma que chegamos.

"Quando as teias de aranha se juntam, elas podem amarrar um leão."

No Museu de Arte do Rio, o público pôde sentir essa partilha do sensível que conecta o romance com as poéticas da imagem em uma exposição chamada "Um Defeito de Cor", eleita pelo público da revista seLecT a melhor exposição de 2022, com a curadoria da própria autora, Amanda Bonan e Marcelo Campos, habitando o museu com cerca de 400 obras —número aproximado ao total de personagens do romance—, entre pinturas, vídeos, desenhos e esculturas, a maior parte de artistas negros.

Ali foi hasteada uma bandeira, feita por Rosana Paulino, em que vemos sob o fundo azul-oceânico e vermelho-sangue o perfil de uma mulher negra cujos traços nos lembram Marielle Franco e cuja boca lança no mundo folhas de espadas-de-iansã. Abaixo da figura, lê-se em negrito a palavra "pretuguês", conceito-guia de Lélia Gonzalez, nossa ensaísta afroatlântica e grande intérprete do Brasil.

A bandeira de Rosana Paulino ao alto, a nova edição de "Um Defeito de Cor", as pontes que se projetam desses textos, as sensibilidades leitoras que delas resultam, o gesto contínuo de criar aqui neste território a experiência de liberdade —com saída para o mar— são signos fluídos de uma ideia tão bela quanto libertadora: não sabemos do futuro o que será, mas sabemos que ele igualmente será moldado pelas mãos das mulheres negras.

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