Por que Hollywood não contrata atores gordos para viver personagens gordos?

'Fat suits', usados por Courteney Cox, Tom Hanks e outros, reforçam ausência de pessoas 'plus size' no cinema e na TV

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Farah Fleurima
The New York Times

A esbelta Courteney Cox deu início à brincadeira, quando retratou Monica Geller como uma adolescente gorda em "Friends", na Hollywood da década de 1990.

O papel de Gwyneth Paltrow em "O Amor é Cego" levou a piada adiante. E, no último ano, houve uma verdadeira explosão de atores de grande sucesso usando trajes especiais que os fazem parecer muito mais gordos —os "fat suits"— a fim de interpretar papéis de pessoas de corpo pesado. Durante todo esse tempo, as pessoas "plus size" reais permaneceram invisíveis.

Cena de 'American Crime Story: Impeachment' com a atriz Sarah Paulson no papel de Linda Tripp
Cena de 'American Crime Story: Impeachment' com a atriz Sarah Paulson no papel de Linda Tripp - Divulgação

A atriz Emma Thompson, que no passado se pronunciou sobre os padrões pouco realistas de Hollywood quanto ao corpo feminino, teve de enfrentar ataques na mídia social, alguns meses atrás, depois que uma foto que a mostrava aparentemente usando um "fat suit" —na adaptação cinematográfica do musical "Matilda"— se tornou sucesso viral.

Em julho, o público viu o musculoso Chris Hemsworth se exercitando para reduzir a barriguinha em "Thor: Amor e Trovão". E agora é a vez de Brendan Fraser, que está retomando sua carreira e circula pelos festivais de cinema do final de ano promovendo "The Whale", filme no qual ele retrata um homossexual deficiente físico que pesa 270 quilos, soterrado sob montanhas de próteses.

Outras estrelas que vimos envoltas em gordura, seja real, seja protética, para papéis de cinema e TV incluem Sarah Paulson ("American Crime Story: Impeachment"), Colin Farrell ("Batman"), Christian Bale ("Vice") e Tyler Perry, como Madea, em numerosos filmes.

Brendan Fraser no filme "The Whale", de Darren Aronofsky, que ganha exibição no Festival de Veneza
Brendan Fraser no filme 'The Whale', de Darren Aronofsky, que ganha exibição no Festival de Veneza - Divulgação

Quando produções de Hollywood recorrem a artifícios para que atores interpretem personagens de tamanho maior, uma questão importante persiste —por que Hollywood simplesmente não contrata atores grandes para interpretar personagens grandes?

A primeira resposta que me vem à mente é dinheiro. Filmes precisam dar lucro, e a maneira mais segura de gerar venda de ingressos é confiar no poder das estrelas. Por isso, não é surpresa que os produtores queiram nomes famosos para os papéis principais de filmes e espetáculos.

Mas, graças ao histórico da indústria do entretenimento quanto a evitar atores de tamanho grande em papéis principais —ou na maioria dos outros papéis—, o número de pessoas de maior porte que chegaram ao status de estrela é muito, muito pequeno. No entanto, se Hollywood decidisse correr riscos com atores de tamanho maior, será que isso não criaria um verdadeiro exército de talentos de primeira linha a que recorrer?

J. Kevin Thompson, professor aposentado de psicologia da Universidade do Sul da Flórida, nos Estados Unidos, dedicou décadas a estudar a imagem e percepção das pessoas gordas na mídia. Embora os dias iniciais do "fat suit" no cinema possam ter servido a um propósito prático, no caso, financeiro, ele disse em um email, seus usos mais recentes podem ser psicologicamente prejudiciais tanto para os espectadores quanto para os atores —e as mulheres, tanto na tela quanto no público, terão de arcar com a maior parte da dor.

Para os homens, a oportunidade de ganhar peso lentamente para um papel é claramente um privilégio. "Uma produção não vai ser suspensa por três meses para que um ator de primeira linha ganhe peso em uma viagem à Itália a menos que o nome desse ator seja De Niro", disse Thompson, via email, se referindo a Robert De Niro, que engordou muito para o o papel principal de "Touro Indomável", de 1980, que valeu a ele um Oscar.

"Depois disso, se tornou uma distinção seguir rigorosamente o 'método' e ganhar peso para trabalhar sem o ‘fat suit’, a não ser que você seja mulher."

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O diretor Martin Scorsese e Robert De Niro nas filmagens de 'Touro Indomável', de 1980, filme que retrata a história do ex-boxeador Jake LaMotta - Divulgação

Ele acrescentou que encontrou no máximo 10% de mulheres que foram autorizadas a ganhar peso de verdade para fazer filmes. Apontou para Renée Zellweger, que engordou pelo menos dez quilos para "O Diário de Bridget Jones", e Charlize Theron, que disse que engordou mais de 20 quilos para "Tully".

Ao contrário dos atores homens, acrescentou Thompson, as mulheres parecem destinadas a usar "fat suits", para adicionar peso em questão de horas, sem considerar o impacto disso em sua psique. Ele teorizou que, para as atrizes, se tornar gorda de repente pode parecer um pesadelo realizado.

Cena de 'O Diário de Bridget Jones' - Netflix

Embora essa teoria se baseie em princípios gerais de psicologia quanto às coisas que as pessoas temem, e não em pesquisas formais, Thompson disse que "se ver encarnado como uma pessoa gorda provavelmente causaria intensa ansiedade —especialmente para atores, particularmente as mulheres, que passam grande parte de sua vida gerenciando a aparência e o peso como um requisito de trabalho".

Quanto aos espectadores, Thompson disse acreditar que o mais provável é que meninas e mulheres se sintam pressionadas ao ver mulheres na mídia transformadas pelo uso de "fat suits".

Como em "Friends", os "fat suits" são usados com muita frequência apenas como piada —seu aspecto é tão irrealista (vide Eddie Murphy em "O Professor Aloprado") que mesmo em um drama eles induzem risadas. Um exemplo é Tom Hanks, que conseguiu alguns risinhos com sua interpretação do obeso coronel Tom Parker em "Elvis". Isso só faz aumentar a percepção de que as pessoas gordas são motivo de risada.

Em 2007, Thompson foi um dos autores de uma análise que afirmava essa percepção sobre como a gordura era estigmatizada no cinema e TV.

Cena do filme 'O Professor Aloprado'
Cena do filme 'O Professor Aloprado' - Divulgação

"Papéis como esses são frequentemente associados ao 'humor', o que, é claro, pode não ser tão engraçado para a pessoa que é o alvo da piada", ele disse, sobre as constatações do estudo.

Com a importância que os "fat suits" ganharam neste ano, o debate público sobre o assunto ganhou força. No mês passado, Bill Maher, que apresenta um talk show na HBO, zombou da ideia de que só atores de grande porte deveriam interpretar personagens de grande porte, e defendeu, em lugar disso, uma prática de seleção de elenco que não leve em consideração raça, etnia, orientação sexual ou porte físico.

"Os diretores de elenco têm que parar de prestar atenção à polícia de elencos e voltar a fazer seu trabalho, que é escolher o melhor ator para o papel", escreveu Maher no Twitter, um comentário que chamou a atenção da mídia social.

A ideia parece simples e atraente, mas não se sustenta. Assim como em outros setores, se os produtores não forem desafiados a estender mais suas redes, o "melhor ator para o papel" tenderá a ser alguém integrado ao status quo —pessoas brancas, pessoas esbeltas, seja lá qual for a norma do momento.

Como nem todo papel ou produção requer a presença de estrelas, por que os diretores de elenco não podem dar oportunidades aos muitos atores de porte físico avantajado e imensamente talentosos que existem no mercado?

O tempo, os salários e a mão de obra necessários para envolver Sarah Paulson completamente em próteses para retratar Linda Tripp em "Impeachment: American Crime Story" a tornaram tão irreconhecível que tive que me perguntar "por que ela?". Na mesma série, Beanie Feldstein, uma atriz de belas curvas, conquistou o papel de Monica Lewinsky, uma mulher de belas curvas; ou seja, os produtores estão cientes de que escolhas sensatas de elenco são possíveis.

Da mesma forma, os telespectadores mal conseguiam distinguir Colin Farrell sob as camadas de maquiagem e próteses que o recobriam em "Batman", filme no qual ele interpreta o vilão Pinguim. Não consegui distinguir o ator irlandês nem uma vez, sob todos aqueles efeitos especiais, e por isso não está claro o que teríamos perdido se outra pessoa tivesse feito o papel.

Nada disso é uma contestação ao talento de Paulson ou Farrell, que na verdade são dois dos meus atores favoritos, nas telas de cinema ou TV. Mas um ator em começo de carreira, e mais motivado, poderia ter trazido um ataque e sabor diferentes a esses papéis e poderia ter atraído mais atenção aos personagens.

Colin Farrell em cena do filme "O Batman", de Matt Reeves
Colin Farrell em cena do filme 'O Batman', de Matt Reeves - Divulgação

Em alguns casos, os "fat suits" podem funcionar —por exemplo, quando um ator magro reproduz fielmente a pessoa real que ele está retratando (a exemplo de Bale personificando Dick Cheney em "Vice"). Da mesma forma, o recurso pode funcionar quando usado para mostrar a progressão física de um personagem dentro de um período de tempo relativamente curto, como acontece com Chris Hemsworth em "Vingadores: Ultimato" e no mais recente "Thor".

Faz pouco sentido ter outro ator, barrigudinho, para o papel se presumimos que a idade de Thor ao perder peso é próxima da idade que ele tinha quando mais gordinho. No entanto, outra atriz com certeza poderia ter interpretado Monica em uma idade muito distante daquela que a personagem tinha em "Friends".

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Christian Bale, debaixo de pesada maquiagem, interpreta o ex-vice-presidente americano Dick Cheney em 'Vice', de Adam McKay

Preguiça semelhante vem sendo vista há muito tempo na seleção de atores para papéis de pessoas não brancas. Não há como esquecer Zoe Saldaña, uma atriz com pele cor de caramelo, interpretando a cantora Nina Simone em uma cinebiografia muito criticada da cantora, que tinha a pele bem escura e se orgulhava muito de sua cor.

Claro, Saldaña era um nome famoso para encabeçar uma produção independente, mas um filme em escala tão pequena poderia facilmente ter escalado uma desconhecida para o papel principal. O que teria despertado curiosidade pelas razões certas.

Seja para causar risos ou para efeito dramático, envolver atores esbeltos em "fat suits" sempre parece uma solução comodista de seleção de elenco. Repensar as escolhas de atores não é apenas questão de representação, mas também de contar histórias com mais nuances.

A atriz Chrissy Metz, por exemplo, conquistou um papel, em "This Is Us", série de grande sucesso na rede americana NBC, presumivelmente por seu talento e não por seu tamanho, mas seu tamanho é crucial para a trajetória da personagem.

Sim, já é mais do que hora de os produtores prestarem menos atenção à forma do corpo e de darem aos artistas de maior porte a oportunidade legítima de brilhar com base em mais do que sua aparência. A verdadeira representação significa não só considerar mas escalar atores de porte avantajado para qualquer papel. E essa é uma virada que pode promover uma grande mudança em Hollywood.

Tradução Paulo Migliacci

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