Como 'O Massacre da Serra Elétrica' sobreviveu à máfia do pornô e ao sol do Texas

Clássico faz 50 anos e roteirista Kim Henkel lembra perrengues da produção que parou na mão da turma de 'Garganta Profunda'

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Cena do filme 'O Massacre da Serra Elétrica', de 1974, dirigido por Tobe Hopper

Cena do filme 'O Massacre da Serra Elétrica', de 1974, dirigido por Tobe Hooper Divulgação

São Paulo

"O sol do Texas hoje em dia está mais quente do que nunca, assim como em todo o mundo, infelizmente." Quem confirma isso é o roteirista Kim Henkel, em entrevista por videoconferência da ilha americana do Havaí, onde o clima não parece ser quente o suficiente para dispensar um casaco e um boné para esconder sua careca.

Mas não é preciso estar fisicamente no Texas para que Henkel, hoje com 77 anos, relembre os 40 graus de uma casinha em Round Rock, cidade próxima a Austin, nos Estados Unidos, na qual passou dezenas de horas suando junto de galinhas, carne podre e toda uma trupe de jovens que estavam dando, literalmente, o sangue pelo cinema.

Cena do filme 'O Massacre da Serra Elétrica', de 1974, dirigido por Tobe Hopper
Cena do filme 'O Massacre da Serra Elétrica', de 1974, dirigido por Tobe Hooper - Divulgação

"Não podíamos ter ar-condicionado por causa do som e tivemos de tampar todas as janelas para filmar durante o dia, o que só piorava o calor junto das luzes. Aí botamos ossos de galinha ressecados e carne crua [no salão], e as pessoas saíam para vomitar, não aguentavam o cheiro", diz Henkel, sobre as últimas filmagens de "O Massacre da Serra Elétrica", feitas há 50 anos, e que ficaram célebres por terem durado cerca de 26 horas.

O Sol era apenas um dos problemas que a equipe e os personagens —ambos hippies— enfrentavam. Nas sequências que encerram esse clássico do terror, que agora volta em cópia remasterizada aos cinemas, temos Sally, vivida por Marilyn Burns, amarrada numa cadeira na sala de jantar de uma família de maníacos canibais, que tem como membro mais célebre Leatherface, o brutamontes da motosserra.

Única sobrevivente do seu grupo de amigos, Sally grita desesperada (Burns não aguentava mais as filmagens), tem seu dedo cortado (de verdade, sem sangue falso) e chupado por um cadáver ambulante —o vovô encarnado por um ator de 19 anos sob camadas de látex.

Final girl por excelência, Sally consegue escapar (e Burns pula do telhado da casa sem dublê), coberta de sangue, e arranja uma carona no nascer do Sol, deixando Leatherface furioso a dançar na beira da estrada, rodopiando com sua motosserra. Claro que, na ocasião, Gunnar Hansen, que vive o maníaco, também acabaria se machucando com a ferramenta fálica.

À parte os bastidores de um filme que custou US$ 100 mil, a empreitada concebida pelo diretor Tobe Hooper tinha lá suas confusões com a realidade.

"A euforia dos anos 1960 tinha se corrompido", diz Henkel. "A Guerra do Vietnã era uma corda no nosso pescoço. Os Estados Unidos enfrentavam pela primeira vez a falta de petróleo e combustíveis. Foi um período traumático no qual os americanos não sabiam para onde o país caminhava."

Some esses fatores ao escândalo Watergate e à selvageria do sonho americano que terá uma boa ideia do que atormentava Hooper, então perto dos 30 anos.

Não à toa, foi numa loja lotada durante o Natal que o diretor teve a inspiração para o "Massacre". No sufoco, um expositor com motosserras brilhou para seus olhos, e ele imaginou uma forma prática de abrir um atalho e escapar daquele lugar.

Ao lado de Henkel, essa fúria virou cinema. "A ideia era trazer jovens da vanguarda social e que fossem um contraponto ao mundo rural que sentia estar sendo invadido", afirma o roteirista.

Mesmo ausente no título brasileiro —que troca "motosserra" por "serra elétrica" num erro técnico que resulta num belo octossílabo—, o Texas é elemento central da narrativa. Daí os hippies virarem jantar em um dos estados historicamente mais conservadores dos Estados Unidos, com uma boa pitada de célebres serial killers.

Apesar de Leatherface ter o nome de "cara de couro" justamente por usar um rosto humano como máscara, remetendo ao assassino Ed Gein —que fazia móveis com a pele de suas vítimas—, Henkel lembra o texano Elmer Wayne Henley como outra inspiração.

"Era um garoto magricela que, numa entrevista, estufou o peito, mostrou onde jogava os corpos e assumiu que pagaria pelos crimes. Os valores tradicionais conflitavam com os horrores que ele havia cometido", diz. Não por acaso isso vira piada no filme, quando, no meio de uma perseguição, o personagem de Jim Siedow briga com Leatherface por ele ter estraçalhado uma porta.

O ritmo da matança daria à luz o gênero "slasher" —copiado depois em "Halloween", "Sexta-Feira 13" e afins—, mas também provocaria um grande choque no público, que acreditou estar vendo um documentário. A hábil câmera na mão de Hooper e a cena de abertura, com uma narrativa radiofônica, ajudaram a manter esse mistério.

O que a produção não imaginava era o terror que assombraria a distribuição do longa. Com as grandes casas se recusando a lançar o filme, uma tal de Bryanston Pictures, novata no mercado, aceitou o desafio. Para Henkel e Hooper, a empresa era confiável o suficiente, já que tinha filmes como "O Voo do Dragão", de Bruce Lee, no catálogo.

"Só soubemos quando era tarde demais", diz Henkel. O pornô "Garganta Profunda" era outro dos sucessos da Bryanston e, apesar das propagandas de que o "Massacre" havia feito US$ 600 mil em apenas quatro dias, a renda que chegava para a equipe era quase nula.

O fato é que o filme de sacanagem cult, pioneiro por ter um fio de enredo, teve seu orçamento de US$ 50 mil financiado pela família Peraino, ligados à Colombo, uma das grandes máfias de Nova York. Décadas depois, ainda é difícil cravar o quanto o pornô lucrou, mas as estimativas chegam a US$ 600 milhões, com muito dessa grana se perdendo na lavagem de dinheiro dos seus mecenas.

Mesmo sob risco de vida, a equipe do "Massacre" acabaria processando a Bryanston —mas logo a empresa declarou falência com a prisão dos Perainos.

Materiais do filme chegaram a sumir, bem como boa parte dos lucros, e a obra ficaria num limbo da Justiça por mais de dez anos. Até hoje não se sabe se o filme rendeu US$ 30 milhões ou US$ 100 milhões.

O fato é que Henkel, que entrou em Hollywood pela porta dos fundos, nunca largou o osso do "Massacre" e atuou na maioria das continuações da franquia, inclusive a mais recente, "O Retorno de Leatherface", que saiu pela Netflix.

Nenhuma delas fez sucesso, nem a dirigida por Henkel, "O Retorno", de 1995, com Matthew McConaughey e Renée Zellweger. Em vez de um terror intimista, o cineasta apostou em aumentar a família de maníacos canibais e até botou a sociedade secreta Illuminati no meio da história. "Hoje em dia eu teria feito bem diferente", diz o roteirista, que ainda considera o filme incompreendido.

Ainda que veja o caráter único do primeiro longa, Henkel acredita que uma atualização faria bem à franquia. "Estou em negociações de roteiros agora para termos um filme até o ano que vem", diz Henkel, sem entrar em detalhes sobre o que tem em mente.

Depois de massacrar a geração TikTok no ano passado, a ver quem serão as próximas vítimas de Leatherface.

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