Descrição de chapéu
Zeca Camargo

Zeca Camargo: Glória Maria intimidava, mas abraçava os novatos

Ela nunca deixou de ser um ícone, mas se tornou alguém possível de admirar e criticar, confiar e desconfiar

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Salvador

Perdi uma rival. Numa competição que é das mais saudáveis que conheço, a de quem conhecia mais países no mundo. Glória Maria, você venceu.

O Brasil se despediu neste 2 de fevereiro de uma referência no telejornalismo brasileiro. Eu, em particular, me despedi de uma amiga, uma pessoa divertida, profissionalmente rigorosa e acima de tudo curiosa.

Glória Maria e Zeca Camargo no Fantástico, na primeira transmissão em HD da Globo, em 2007
Glória Maria e Zeca Camargo no Fantástico, na primeira transmissão em HD da Globo, em 2007 - Reprodução/Globo

Eu perguntava se ela já tinha ido a Tonga e ela retrucava perguntando se eu conhecia a Nigéria. Indiscutivelmente, ela era a campeã nessa categoria. Mas, mesmo estando algumas dezenas atrás de sua marca, eu com 114 carimbos cravados no passaporte, Glória com mais de 150, eu gostava de achar que ainda um dia iria passar a sua marca.

O que pode ainda acontecer, claro. Se um dia eu chegar lá, nos 150 países, ou mais, não vou deixar de homenageá-la. Seja em Teerã, na Groenlândia, em Botsuana ou Vladivostok.

Quando apresentamos os primeiros programas juntos, nos idos dos anos 1990, Glória já era Glória e eu tremia com a responsabilidade de dividir o estúdio do Fantástico com ela. Sim, Glória intimidava em um primeiro contato. Não tinha como escapar dessa sensação.

Com os anos, ela foi ficando mais humana. Sempre um ícone, mas, aos poucos, alguém que era possível admirar e criticar, confiar e desconfiar, rir e saber ser sério.

A prioridade de Glória Maria era Glória Maria. Tudo em torno de seu trabalho tinha que estar perfeito e contribuir na construção da sua imagem de pioneira. Assim era feito, mesmo que para isso às vezes fosse necessário um confronto.

Glória sabia perfeitamente a importância de se construir uma imagem. Durante todo o tempo em que trabalhamos juntos vi, fascinado, ela colocando tijolo por tijolo da construção da sua.

A figura de uma mulher negra na TV brasileira dos anos 1970 e 1980 era mais que uma exceção. Era um corpo estranho, que ela conduzia com a segurança de quem sabia que estava abrindo um espaço que seria importante para as gerações futuras.

Essa Glória construída não era distante da mulher que ela era no convívio do cotidiano. Entre tantas histórias de madrugadas no fechamento do "Fantástico", noite infinitas de sábado para que o programa ficasse pronto no domingo, minha favorita é a que envolve uma ilha na Tailândia.

Já eram 2h, 3h da manhã, e o roteiro de mais um episódio sobre uma viagem àquele país estava longe de ficar pronto. Escrevendo o texto com um dos melhores editores que o programa já teve, Dario Menezes —que era também seu amigo pessoal—, eles procuravam um adjetivo para uma das praias deslumbrantes do litoral tailandês.

"Exuberante", sugeria Dario. Glória abanava a cabeça negativamente. "Encantadora!", "Deslumbrante!", "Surpreendente!". Cada sugestão do editor era recebida com um não. Até que Glória diz: "Maravilhosa. Escreve aí, maravilhosa". O que ela queria dizer estava na palavra mais simples, mais óbvia até. Era assim que sua mensagem chegava nas pessoas.

Glória dava uma canseira em todos os repórteres cinematográficos que trabalhavam com ela, pois sempre queria a imagem que era a mais difícil de conseguir. Muitas vezes, do alto de um balão.

Luiz Nascimento, diretor do Fantástico por mais de 25 anos, incluindo todo o período em que Glória brilhou no programa, sabia que podia contar sempre com ela, mesmo que fosse para andar numa corda suspensa por dois balões.

Luizinho, como todos que trabalharam com ele ainda o chamam carinhosamente, sabia do potencial que a imagem de Glória tinha e do valor que sua presença no Fantástico representava. Ele sabia homenagear esse talento de Glória como ninguém.

Das histórias que não foram contadas, Luizinho uma vez fez um projeto de programas para uma faixa na madrugada na TV Globo que nunca saiu do papel. O carro-chefe do projeto era um formato para as sextas-feiras chamado "Noites de Glória", onde ela seria ao mesmo tempo jornalista, cronista social, testemunha das noites de festa pelo Brasil e, sobretudo, personagem principal das próprias matérias.

Se "Noites de Glória" nunca se tornou uma realidade, foi talvez porque esse programa já existisse sem mesmo a gente saber. Pois bastava Glória Maria estar numa reportagem para que ela se transformasse exatamente nisso: uma glória.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.