Como a inteligência artificial e a tecnologia invadiram o universo das artes plásticas

Art Dubai traz espelhos e realidade aumentada para aprofundar a relação com as peças na maior feira do Oriente Médio

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Dubai

O chão treme, o som potente atravessa o corpo, acelera a batida do coração. O ponto de vista é o de um enorme falcão dourado. Voamos —parece— nas asas do bicho, cruzando o céu sobre um deserto vermelho, depois desviamos dos minaretes das mesquitas, num rasante sobre a medina, o centro velho das cidades árabes.

São fortes as emoções na Art Dubai. Os simuladores, ou melhor, as obras na maior feira de arte do Oriente Médio e autodeclarada a mais importante no chamado sul global, fazem duvidar se a próxima vanguarda artística será mesmo algo próximo de um parque de diversões.

Obra do artista espanhol Carlos Aires na Art Dubai - Karim SAHIB / AFP

O trabalho dos artistas Michael Benisty e Orkhan Mammadov com a dupla Krista Kim & Maejor, ainda desconhecidos na ala dos grandes nomes da cena atual, é uma caixa preta que mostra um vídeo em 3D com efeitos sensoriais, como tremores no chão, vibrações sonoras e rajadas de ar.

Se o aspecto é de videogame, a premissa é até interessante. Os cenários deslumbrantes são criados a partir de uma base de dados que compila as formas que mais aparecem nas pinturas orientalistas, as obras europeias que imaginavam, com boas doses de fantasia, os cenários exóticos do Oriente.

E é no cruzamento de dados, aliado à inteligência artificial depois arrematado com efeitos hollywoodianos, que se ancoram essas novas obras que poderão encher os museus num futuro próximo.

O artista turco Refik Anadol, superstar do momento, já antecipou a onda levando ao MoMA, em Nova York, uma obra muito parecida com a que instalou num lounge VIP em Dubai. É um cubo espelhado com telões do chão ao teto mostrando explosões de cor, texturas luminosas exibidas ao som de graves potentes que ele chama de "pinceladas algorítmicas".

Os críticos se dividem. Há quem chame as estripulias visuais de Anadol de nada mais que um descanso de tela em escala gigante. Há quem veja nisso uma novidade ousada, equivalente ao efeito libertador que o surgimento da fotografia teve na história da pintura, além de atração promissora para levar mais viciados em selfies aos museus, um contragolpe à onda das chamadas exposições imersivas que viajam pelo mundo —o MoMA pelo menos já viu o número de visitantes explodir com o telão cafona de Anadol.

E outros nomes vão surgindo ou aderindo à onda. Em Dubai, o espanhol Daniel Canogar construiu uma espécie de tobogã de LED que muda de cor de acordo com as p rincipais pesquisas na internet em tempo real —sua busca por um aspirador robô pode se tornar uma brilhante bolinha verde no escorregador do artista.

Fenômeno que se alastra desde a febre dos NFTs no mercado global, a chamada arte digital ganhou uma ala inteira na Art Dubai, e a feira que traz endinheirados todo mês de março para fazer compras num resort faraônico à beira da praia vem alardeando seu pioneirismo na venda dessas obras. O fato de os Emirados Árabes Unidos serem também uma espécie de paraíso fiscal das criptomoedas incentiva o negócio.

Faz todo sentido, aliás, esse apego ao plástico fantástico digital. Quando surgiu há quase duas décadas, a Art Dubai refletia o gosto extravagante da metrópole árabe. Ou seja, as obras tendiam a ser douradas, prateadas, coalhadas de cristais, luzes neon e sempre ostentando cores berrantes.

Estamos agora em um segundo momento, quando tudo isso passa para a superfície reluzente de uma tela e salta dela também com recursos de realidade aumentada de qualquer smartphone. Um exemplo é a pintura de uma pantera que quando enquadrada pela câmera do celular salta da superfície estática da obra e caminha em direção ao espectador.

É curioso, mas difícil precisar o que a obra diz sobre a atual ordem das coisas no mundo. Talvez nada mesmo, o que não deixa de refletir o espírito de um tempo hiperconectado em que tudo o que importa é o novo modelo de iPhone a chegar às prateleiras.

O virtual, parecem dizer o oráculo ChatGPT e afins, supera o real. O artificial supera o humano. E tudo reluz ligado à eletricidade, transformando emoções num zunido indecifrável.

E então existe o outro lado da moeda, expressão que se torna literal no contexto de uma feira que tem por objetivo vender obras de arte à sua clientela jet set.

Na ala não digital da Art Dubai, as obras são cada vez mais táteis, exacerbam a própria materialidade, presenças que se dão ao toque. Há uma overdose de trabalhos em tecido, felpudos, fofos, em vidro e cerâmica, dos lisos e reluzentes aos ásperos ao toque, arenosos. É uma renúncia à natureza espectral, fantasmagórica das telas da arte digital.

Um exemplo que faz uma ponte entre o tecnológico vazio e a exuberância do material é o trabalho do sul-coreano Yunchul Kim, que representou seu país na última Bienal de Veneza. É uma máquina grotesca, cheia de tubos, fios e válvulas de metal e vidro expostos aos olhos rodeada de aquários cheios de um líquido fluorescente que borbulha e corre por superfícies que lembram telas —o ponto aqui é que não são, a água ali é real.

Outra artista sensação, com obras espalhadas por várias galerias da feira, é a turca Nevin Aladag, que constrói mosaicos de cor usando tecidos estampados montados sobre uma base acolchoada. É uma pintura que avança para além do plano bidimensional.

Alguns desses trabalhos também aparecem na atual Bienal de Charjah, a maior mostra de arte contemporânea do Oriente Médio que acontece em paralelo à feira no emirado vizinho. Lá, elas fazem companhia às peças de outra artista em alta na Art Dubai, a indiana Anju Dodiya, que pinta lindas mulheres de rostos angulosos também sobre superfícies acolchoadas, uma vontade tátil que causa um curto-circuito entre a moleza da obra e o erotismo pontiagudo de suas divas.

Obras com neon, como as da italiana Marinella Senatore, que esteve na última Bienal de São Paulo, e cheias de brilho também não faltam, reforçando uma constante na Art Dubai.

Mas há uma novidade —os espelhos também estão em alta, espelhos mesmo só que recortados e trincados como nas obras do italiano Giampiero Romanò.

Outro italiano bem mais conhecido, Maurizio Cattelan, aquele que grudou uma banana com fita adesiva em uma parede da Art Basel Miami Beach uns anos atrás, também mostra em Dubai um espelho, o dele de moldura dourada cheia de flores e arabescos, bem ao gosto local. No meio deles, vemos o nosso próprio rosto refletido, uma lembrança kitsch de que ainda existimos em carne e osso na era das telas que insistem em se esquecer de nós.

O jornalista viajou a convite da feira

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