Como Rubel mistura 'Torto Arado', MC Carol e até novela da Globo em seu novo disco

Cantor se afasta do indie de autodescoberta e se aproxima da MPB e do Brasil profundo em 'As Palavras - Vol. 1 & 2'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

As marcas de opressão e resistência do Brasil rural de "Torto Arado" e o hedonismo feminista da putaria de MC Carol. A autoridade sagrada da voz de Milton Nascimento e o romantismo ensolarado do canto de Xande de Pilares. O Doutor Albieri da novela "O Clone" e o assum preto de Luiz Gonzaga. Esses são alguns dos personagens e atores de "As Palavras - Vol. 1 & 2", recém-lançado terceiro disco de Rubel.

A princípio, o elenco sugere certa aleatoriedade, uma indecisão do artista entre o funk, o pagode e a chamada MPB. Rubel afirma, porém, que não há indefinição e, sim, a convicção de uma linha que costura toda a amplidão de seu recorte —tudo ali aponta para o desejo de, nas palavras dele, se reconectar com um Brasil do qual a gente se orgulhe.

O cantor e compositor Rubel
O cantor e compositor Rubel - João Kopv/Divulgação

"A música brasileira me fez querer ser brasileiro, boa parte da percepção que temos do país foi construída por ela. Mas nossa música se fundamentou em bases que hoje são contestadas, como o mito da democracia racial, o louvor da mestiçagem", reflete Rubel, citando uma ideia que ouviu numa fala de Antonio Prata.

Prata disse "a gente precisa criar um novo discurso para o Brasil". "Qual é o novo discurso? O que a gente ama nesse país? Qual o sonho por trás do Brasil? Quais são as tradições inventadas que a gente vai soprar para acreditar no Brasil?"

"As Palavras" desenha um Brasil de forró e de reggaeton, de beats de Gabriel do Borel e de acordeão de Mestrinho, de Clube da Esquina e de Cacique de Ramos. Um país que dança com Rosalía e com Orkestra Rumpilezz.

Uma nação que surge como pergunta quando Rubel olha para o futuro nos pequenos filhos dos amigos. "Será que ainda vão dizer/ ‘É dessa terra que eu sou?'", indagam os versos de "Samba de Amanda e Té". Um Brasil visto por seus colegas de geração, que participam do disco como compositores, cantores ou produtores —Liniker, Tim Bernardes, Mahmundi, Bala Desejo, Luedji Luna, Ana Caetano, do duo Anavitória, Dora Morelenbaum, Ana Frango Elétrico, a dupla Deekapz.

"Na força da nossa canção existe a esperança de se repensar o Brasil. No disco, exponho que Milton Nascimento, Gabriel do Borel e o pagode me emocionam em igual medida", diz Rubel.

Tanto Milton como Gabriel participam do disco. Consciente do potencial choque que a comparação de Milton com um artista de funk pode provocar, Rubel faz questão de avançar em seu pensamento.

"A gente vive há décadas sob a regência desses orixás [a geração dos anos 1960 da MPB]. Eles são sagrados e são a coisa mais linda. Mas a gente precisa desrespeitar um pouco esse culto, porque senão não vamos conseguir olhar para o que está acontecendo agora com a reverência que a gente precisa. O lugar da revolução de João Gilberto hoje é ocupado por Gabriel do Borel e Kevin O Chris. O funk é a vanguarda."

No disco, o funk aparece de maneira mais evidente em "Put@ria!", que Rubel canta com BK e MC Carol, sobre os beats de Gabriel do Borel. Mas há marcas do gênero em outros momentos, como na instrumental "Rubelía" —uma brincadeira com Rosalía, cujo álbum "Motomami" foi uma das referências centrais para Rubel.

O álbum tem diferenças marcadas para seus dois discos anteriores, "Pearl", de 2013, e "Casas", de 2018. Não só musicalmente, mas também nos temas, o disco avança sobre universos mais amplos do que o terreno do indie confessional que ele explorava até então.

"Nossa geração é muito autocentrada e lê pouco", acredita Rubel. "Quase todas as canções são sobre amor e autodescoberta. Não quero rejeitar o que eu fiz nem o trabalho dos meus colegas de geração, de quem sou fã. Mas sinto vontade de expandir esse repertório."

Em paralelo, Rubel foi sendo abraçado nos últimos anos pela MPB, em duetos com artistas como Adriana Calcanhotto e Gal Costa. Em "Mantra", ele ganhou o aval de Emicida, seu parceiro na canção.

Com o peso da responsabilidade, Rubel foi estudar. Assim, chegou a livros fundamentais para ele na construção do álbum —os romances "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior, e "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro, e "O Povo Brasileiro", de Darcy Ribeiro.

"Torto Arado" o impressionou tanto que ele transformou em canção homônima, que está no disco. O autor do livro ouviu e aprovou. "Fiz questão de mandar para ele. Na música, uso o nome, os personagens e a trama do romance. Senti que precisava de sua autorização. Ele foi muito generoso e gentil. Respondeu com um longo email, superemocionado, dizendo que eu tinha pegado a essência do livro."

A canção "Torto Arado" é um dos momentos em que a violência aparece no disco. Há também o baião-rap "Forró Violento", que conta a história de uma mulher grávida que, no desespero da pobreza, decide assaltar um banco com o marido e é baleada na barriga. "A violência tinha que estar no disco porque o Brasil é violento", diz Rubel.

Apenas duas canções não são da autoria de Rubel, só ou com parceiros. Ambas são de Luiz Gonzaga —"Assum Preto", com Humberto Teixeira, e "Forró no Escuro". Elas aparecem lado a lado, no fim do disco, como uma espécie de conclusão dos mais de 50 minutos de "As Palavras — Vol. 1 & 2".

Se "Assum Preto", aqui em gravação à capella de Dora Morelenbaum, é testemunho de tristeza e opressão em nome da beleza ("furaro os zóio do assum preto/ pra ele assim, ah, cantá mió"), "Forró no Escuro" é a afirmação da superação —mesmo sem luz, o forró segue.

As Palavras - Vol. 1 & 2

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.