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'Estado de Terror' é acerto de contas político de Hillary Clinton

Livro coescrito com Louise Penny sugere que ex-secretária de Estado tenha usado a ficção para insinuar segredos

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Estado de Terror

  • Preço R$ 69,90 (464 págs); R$ 44,99 (ebook)
  • Autor Hillary Clinton e Louise Penny
  • Editora Arqueiro

O leitor do romance "Estado de Terror" tem um mistério para desvendar. Precisa descobrir quem está por trás da organização terrorista que alvejou cidades europeias e, com isso, impedir o iminente ataque nuclear contra os Estados Unidos.

A ex-Secretária de Estado americana Hillary Clinton - REUTERS

Há um outro mistério, porém, talvez mais urgente —decifrar o quanto de sua vida Hillary Clinton escondeu nas entrelinhas desse thriller político, de que é coautora.

Hillary, que foi secretária de Estado americana e concorreu à Presidência em 2016, escreveu "Estado de Terror" em parceria com Louise Penny, uma experiente autora do gênero detetivesco conhecida pela série "Inspetor Gamache". Seu marido, o ex-presidente Bill Clinton, tinha feito a mesmíssima coisa ao lançar "O Dia em que o Presidente Desapareceu", de 2018, com James Patterson, da série "Alex Cross".

É uma estratégia brilhante, dessas de raposa, como foi a longa carreira política de Hillary. O leitor não sabe como ela e Penny se dividiram na escrita, quem fez o quê.

É difícil não suspeitar, nesse sentido, que Hillary tenha usado a ficção para dizer coisas que não pode expressar de outra maneira. Daí a camada adicional de mistério, um dos elementos que prendem tanto na leitura. Daí também a provocação aos biógrafos, que vão passar os próximos anos desemaranhando esse nó.

O livro conta a história de Ellen Adams, secretária de Estado americana, cargo que Hillary ocupou de 2009 a 2013. Adams trabalha para o presidente Douglas Williams, que ela detesta. Os dois inimigos são forçados a superar suas desavenças, porém, no momento em que uma crise sacode o governo, ainda nos seus primeiros meses.

Bombas explodem em ônibus em Londres, Paris e Frankfurt. Ninguém assume a autoria, e a única pista que Adams tem —em uma tarefa quase de detetive— é uma mensagem enigmática enviada para uma de suas subordinadas, Anahita Dahir. Hillary e Penny levam a trama do livro por lugares como Irã, Paquistão e Rússia.

Enquanto contam essa história, as autoras jogam migalhas de pão cintilantes para o leitor, difíceis de não ver. Adams descreve o governo anterior como de "uma incompetência quase criminosa", por exemplo. Diz que o ex-presidente "estragou tudo que tocou". Parece falar de Donald Trump, que venceu Hillary nas eleições.

Em outro trecho, a protagonista vê o premiê britânico na tela de uma videoconferência e nota seu "cabelo desgrenhado". Surpreenderia se Hillary não estivesse pensando no ex-premiê Boris Johnson, famoso por seu penteado caótico.

Quando Adams diz que "estava acostumada a ser subestimada" e que as "mulheres de meia idade bem-sucedidas costumavam ser depreciadas por homens pequenos", por exemplo, é a voz de Hillary que soa, para quem acompanha a política americana fora da ficção. Parece ser um tipo de acerto de contas com seu entorno.

O fato de que essas autoras deixaram chaves de leitura tão óbvias faz com que o leitor interrogue todo o resto. O que mais está nas entrelinhas? O presidente russo no romance, Maxim Ivanov, é na verdade o líder real, Vladimir Putin? As forças de extrema direita estão tão infiltradas assim na Casa Branca, como o livro dá a entender? Hillary viu as coisas escabrosas que Adams viu, na função de secretária de Estado?

Críticos literários podem dizer, é claro, que não devemos misturar autor, narrador e personagem. Neste caso, porém, o risco é ignorar a mensagem que Hillary pode ter decidido deixar para trás, como legado de uma carreira política em que teve acesso a bastidores e segredos que ela nunca vai poder revelar em público, em alta voz.

Mas é injusto, é claro, tratar um romance apenas por suas implicações políticas. O livro "Estado de Terror" é uma leitura leve e envolvente. Funcionaria inclusive sem o nome de Hillary na capa—onde aparece, aliás, acima do de Penny. Os capítulos acabam com ganchos novelescos, e mesmo um leitor deveras cínico acaba fisgado.

É louvável, ainda, o esforço que as autoras fazem em não criar um mundo de "nós contra eles". É verdade que o livro coloca os Estados Unidos contra países de cultura islâmica, como Paquistão e Irã–algo infeliz. Mas o romance também faz questão de mostrar que há vilões inclusive dentro da Casa Branca.

Talvez Hillary, esperta, nunca diga que parcela do romance sobre uma ameaça nuclear contra os Estados Unidos é real. Mas ela deixou um aviso claro na última linha de seus agradecimentos: "Cabe a nós garantir que a trama continue ficcional".

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