Que os romances de aventura marítima nasceram no século 19 e a ele pertencem, parece uma verdade simples; trazer algo de sua energia como força ainda válida para este início do século 21 é a inocente crença de Jorge Furtado, ao contar a história de Lucas Camacho Fernandez.
("Que um indivíduo queira despertar em outro indivíduo lembranças que não pertenceram senão a um terceiro é um paradoxo evidente. Executar com despreocupação esse paradoxo é a inocente vontade de toda biografia." É a frase original de Jorge Luis Borges, na abertura de seu ensaio biográfico sobre Evaristo Carriego, aqui parodiada.)
A lembrança ocorreu a este leitor ao experimentar a paradoxal sensação de reviver inocentes leituras juvenis de "A Ilha do Tesouro" ou de "O Conde de Monte Cristo", vibrando com piratas e mares revoltos, numa trama de reviravoltas, revelações, heroísmo e senso de justiça, como nos romances de Stevenson e Dumas, e por outro lado de perceber a elementar evidência de estarmos neste 2022 e de o livro lidar com um tema atual como a violência da escravidão, ora em (justíssima) alta no panorama mental brasileiro.
Tendo ao centro o Lucas do título, o primeiro tradutor de Shakespeare ao português (ainda antes da morte do bardo), a narrativa constrói um percurso borgeano que brinca com elementos reais do passado —como o corsário Francis Drake— e do presente —o conhecimento detalhado sobre as torturas a que eram submetidos os escravizados no Brasil— em um enredo inventivo.
Bem distante do asséptico Borges estão os momentos de sexo, amor e paixão da trama, funcionando como núcleos dramáticos do enredo, desde a vida da mãe de Lucas, uma africana de origem socialmente alta que foi escravizada à força mas acabou vivendo uma vida serena em Londres, como amante de Drake e como eventual namorada do jovem Shakespeare, até uma relação historicamente improvável, embora convincente no relato, vivida pelo londrino Lucas no Brasil.
No conjunto, o livro traz certa precariedade narrativa por seu andamento veloz, quase uma sinopse estendida (a história sugere filmagem o tempo todo, não fosse o autor um consagrado diretor de cinema e televisão), ao lado de algumas imprecisões (na cena inicial, um inglês sabe reconhecer o sexo de elefantes, mas os nativos da região não sabem, por exemplo).
No mesmo prato negativo da balança pesa certa intenção de fazer graça fácil, como a invenção das batatas fritas por Shakespeare.
Mas no outro prato pesam valores importantes, como o desembaraço da criação ao mover-se numa trama remota no tempo e no espaço e a mesma velocidade dos fatos, os quais, se não oferecem meios e vagar para os personagens desdobrarem sua subjetividade em bom nível, evocam com frescor aquelas aventuras, aquele heroísmo, aquele universo de valores nítidos há tanto tempo perdido.
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