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Oscar embarca em canoa furada ao premiar 'Tudo em Todo o Lugar'

Problema do filme, que levou sete estatuetas, é jogar o espectador num faz de conta aborrecidíssimo do multiverso

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O melhor de "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" é o princípio —lá está uma família sino-americana, cercada de problemas tanto familiares como econômicos. A lavanderia que possuem está em estado falimentar, os adultos precisam se entender com o pai da mulher, com o namoro da filha com outra garota e com um pedido de divórcio do marido. Pior, precisam se entender com o fisco e suas 1,001 exigências.

Temos aí desenhado o quadro geral de um filme que toma por tema a degradação da classe média americana —a decadência econômica, a falta de perspectiva para o futuro, a detestável pressão do Estado sobre as pessoas.

Jamie Lee Curtis e Michelle Yeoh em cena do filme 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' - Divulgação

É um quadro plausível e não desinteressante, embora a histeria que atinge tanto os personagens quanto a câmera já nos façam esperar pelo pior desde então.

O pior virá logo em seguida, na confrontação entre a burocrata fiscal e a família. O que começa por uma prestação de contas adversa à lavanderia, seja por incompreensão dos códigos da burocracia, seja por simplesmente não ter dinheiro.

É justamente aí, na culminância dos problemas econômico-afetivos da família, que tudo começa a desandar francamente.

A sequência no fisco evolui para um humor grotesco, um pouco à maneira de Terry Gilliam. A histeria se acentua, excessiva, transformando a situação dolorosa em caricatura e daí remetendo aos 1.001 universos paralelos que se acotovelarão ao longo do filme. Entra em ação o multiverso, a grande novidade novidadeira com que nos acenam os diretores conhecidos como Daniels, autores do filme.

Temos visto universos múltiplos realmente inquietantes. Basta olhar para os filmes de David Lynch, em especial o novo "Twin Peaks"; ou para os filmes de David Cronenberg, em especial "eXistenZ", ou para os terríveis sonhos de "Hora do Pesadelo", de Wes Craven, com sua perversa capacidade de se tornarem reais.

Os de "Tudo em Todo o Lugar" servem a estabelecer o princípio de que a cada plano corresponda ao menos um efeito especial, que a cada meia dúzia de planos (e eles são rápidos) corresponda uma variante da ação principal.

Num deles, a heroína pode ser lutadora de kung fu, em outro a filha pode aparecer como a agente do caos universal etc. Mas esse multiverso serve, basicamente, ao acúmulo (aborrecidíssimo, por sinal) de desviar a atenção do tema central, que retorna de tempos em tempos —o melodrama familiar.

Ele envolve transformações malabarísticas nos personagens, isso é certo, mas por que a jovem filha aparece como agente do caos? Porque o caos, na cabeça de sua mãe, é ela ser rebelde e, sobretudo, ter uma orientação sexual que não a satisfaz.

O divórcio passa por diversas variações, conforme o universo visitado, mas ao final, ninguém duvide, tudo acabará com a família unida (e isso não é um "spoiler", esta é a regra do melô contemporâneo).

Podemos lamentar que uma abordagem que poderia ser realista de um drama da decadente classe média desvie para uma fantasia tola em torno de universos não só paralelos como perfeitamente fictícios, e perfeitamente descartáveis, de modo a chegar a um filme descartável, que ao acenar para certas modernidades (do multiverso à diversidade sexual e à e simpatia com imigrantes) se desvia de um núcleo significativo.

É verdade que estamos em um ano de Oscar muito fraco, mas em anos fortes como nos fracos, nas piores como nas melhores escolhas, a premiação exprime um sentimento da comunidade hollywoodiana sobre os problemas do mundo. Ele vende alguma coisa (filmes), ao mesmo tempo em que chama a atenção para certos problemas.

O problema de "Tudo em Todo Lugar" é que ele faz o gesto de suscitar questões que existem para no momento seguinte jogar o espectador no faz de conta do multiverso, temperado por umas filosofices sobre a extensão do universo, e explicitar por efeitos especiais certas inquietações contemporâneas (as transformações tecnológicas e a capacidade humana de as controlar), ao mesmo tempo em que cada um desses aspectos (e existem outros) serve essencialmente para borrar os outros.

No fim resta o grupo de guerreiros, como em qualquer fantasia bélica. Triunfante como em qualquer fantasia. O que era problema real, enunciado no início do filme, mesmo com todos os problemas, é devidamente esterilizado.

O mundo segue como é, apenas com um filme esperto a mais, ganhando um Oscar a mais. Para que problema, afinal, aponta a premiação de 2023 para os supostos melhores filmes de 2022 —Hollywood está um tanto perdida no mundo inquietante que se anuncia e embarca em qualquer canoa. Esta, a deste ano, desculpe quem viu virtudes maiores neste filme, me parece bem furada.

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