Desde a aventura de Ulisses na "Odisseia" homérica, aprendemos que uma grande marca da diferença entre os sexos é o pendor dos homens a correr mundo, enquanto cabe às mulheres esperá-los. Não há fundo natural para isso, é claro, mas a literatura e a arte se valeram desse tropo insistentemente ao longo de milênios.
O que se pode esperar então de um romance que, em 2023, conta a história de um homem que resolveu "deixar tudo novamente para trás"? Pode-se esperar muito e, no caso de "A Segunda Morte", de Roberto Taddei, a espera compensa.
A condição de sucesso para o investimento arriscado de retomar um clichê é subvertê-lo pela raiz. Isso não significa, no caso do lançar-se ao mundo, o deslocamento das expectativas quanto aos gêneros, o que seria uma solução óbvia. O que Taddei faz, diferentemente, é dobrar sobre si própria a ideia de ir embora: seu protagonista, ao fugir, parece sempre estar chegando.
Acompanhamos Gustavo Embaú, um velho, como descreve o narrador em terceira pessoa, apresentando aos leitores o modo como o próprio personagem se enxerga. É um velho que aparenta estar doente, à espera do momento em que a morte chegará, mas que, ainda disposto o suficiente, pega o carro e desce da metrópole para o litoral, de onde não pretende voltar. Ele viveu algo de importante muitos anos atrás nessa cidade à beira-mar, mas nem ele parece se lembrar bem.
Gustavo está indo embora do quê, abandonando quem, procurando que espécie de paz com o passado? O narrador jamais revela, mostrando como é produtiva a escolha de deixar ao leitor espaço para imaginar.
Não que o que está velado propriamente importe: o que importa é a relação que o sujeito construirá com Bianca, a também idosa dona da pousada em que se hospeda; a recuperação de algum vigor no contato com a natureza; e, sobretudo, a negociação física, mental e ética que estabelecerá com a morte.
O que Gustavo ainda deseja, diz o narrador, é "ser atravessado pelo mundo", o que é muito diferente de "atravessar o mundo". Este último movimento, tipicamente masculino, ele já experimentou e não guarda boas lembranças.
Em vez de enfrentar o mundo à sua volta, o sujeito abre-se então a ele. É por isso que se joga ao mar revolto da madrugada, percorre trilhas esquecidas, observa estranhos tendo relações sexuais. E é também por isso que se une a Bianca, o que incluirá ajudar a mulher a cuidar de seu marido inválido.
Longe de construir uma história deprimente ou enfadonha, Taddei nos aproxima com delicadeza e humor dessa situação tão improvável quanto produtiva. Como um homem que está à espera da própria morte pode lidar com aquele sujeito preso a uma cama, que vive uma morte em vida? E que paralelos pode traçar com a experiência de seu próprio destino?
"A Segunda Morte" nunca nos dá uma resposta direta, ainda que o título sugira caminhos, que cada leitor preencherá também com as próprias experiências.
Além dos protagonistas, uma série de personagens povoa a cidadezinha, tornando o ambiente vivo aos sentidos. Mas é a natureza física, inclusive a dos corpos dos homens, apresentada com um equilíbrio delicado entre descrição e evocação, o que mais contribui para a força imagética do romance.
Entre a pele envelhecida de Gustavo e o coqueiro que, numa ilha, aponta o sentido do vento e a previsão meteorológica, há uma contiguidade que, apesar das convergências entre trama e cenário, escapa ao paralelismo forçado.
A verdadeira força do romance está, porém, na forma como transforma a fuga em um ato de generosidade e de amor. Quando, na "Divina Comédia", Dante encontra Ulisses no oitavo círculo do inferno e lhe pergunta como foi que morreu, lemos que, após retornar a Ítaca, nem o amor de seu filho nem o de sua esposa foram suficientes para refrear o seu desejo de continuar navegando.
Ao relatar o momento da morte, o herói grego conta como a expectativa de ver algo novo e maravilhoso tragicamente se transformou no fim de tudo. Gustavo Embaú é o anti-Ulisses: ele não quer mais explorar o mundo e é por isso que descobre sem tragédia que, como escreve Taddei, ele mesmo "é também o mundo".
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