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Cartas entre Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco traçam bases da proteção ao patrimônio

Em livro com cerca de 300 missivas, escritores discutem rumos do modernismo e a valorização de artistas como Aleijadinho

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Edison Veiga
DW

Foi uma amizade de toda a vida, e ela ficou registrada em cerca de 300 cartas. O poeta, escritor e crítico literário Mário de Andrade (1893-1945) e o advogado, jornalista e escritor Rodrigo Franco de Andrade (1898-1936) ergueram as bases da proteção ao patrimônio cultural e histórico do país.

O escritor Mário de Andrade - Arquivo/TV Cultura

E parte substancial, importante e saborosa desses debates vem à luz agora no livro "Correspondência Anotada", que a editora Todavia lançou na última semana.

O material foi organizado pela neta de Andrade, a editora, pesquisadora e professora Maria Graciema de Andrade. Socióloga e doutora em Letras, ela vasculhou três arquivos para compor o mosaico da obra: o acervo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do qual o avô foi primeiro presidente; o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), responsável pela guarda da coleção pessoal de Mário de Andrade; e o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (AMLB).

A pesquisadora também usou como ponto de partida o livro "Cartas de Trabalho", organizado pela museóloga Lélia Coelho Frota (1938-2010) e publicado em 1985. Ali foram reunidas as cartas trocadas entre Mário de Andrade e Rodrigo Franco de Andrade entre 1936 e 1945.

Parte das missivas que saem no livro recém-lançado é inédita. Isso porque Mário de Andrade estabeleceu um sigilo nas correspondências recebidas de muitos amigos —elas não poderiam ser tornada públicas antes de 50 anos da morte dele.

Aleijadinho, Manuel Bandeira e casas bandeiristas

Se a amizade entre ambos fica clara na troca das mensagens, para a história brasileira é interessante notar como eles acabam definindo os princípios do patrimônio histórico. Entre 1935 e 1938, Mário de Andrade dirigiu o Departamento de Cultura de São Paulo —instituição criada por ele e que é considerada a antecessora da Secretaria de Cultura.

Rodrigo Franco de Andrade, por sua vez, é considerado um dos fundadores do Iphan, que dirigiu de 1937 a 1967 —o mais longevo presidente da história da instituição.

Quando Andrade conta para Mário que precisa contratar uma equipe paulista para empreender pesquisas e levantamentos in loco, de pronto ambos concordam que o melhor seria o próprio poeta acumular a função, subcontratando técnicos.

E as conversas vão desde os temas a serem levantados —Mário empreende diversas viagens e demonstra muita preocupação em mapear as casas coloniais preservadas, as chamadas "casas bandeiristas", entre outros pontos— mas também a questões comezinhas, por exemplo se bastavam recibos simples para justificar gastos com combustível e alimentação.

Contudo, se a afinidade e a parceria da dupla já era conhecida antes dessa publicação, como bem lembra a organizadora Maria, a novidade são as cartas anteriores, trocadas entre 1928 e 1936. "Revelam um papel pouco conhecido de Rodrigo, editor e articulador do modernismo", comenta.

Na posição de editor do periódico O Jornal, ele encomendou a Mário um artigo sobre o escultor Aleijadinho (1730-1814) para uma edição especial sobre Minas Gerais. E aqui há dois pontos importantes, diz Maria.

"Os colaboradores que ele [Andrade] convidou são todos modernistas", pontua. Fica claro, portanto, que os que haviam feito o movimento dos anos 1920 eram considerados o suprassumo da intelligentsia nacional. Outro ponto: para compreender Minas era preciso contemplar um nome como o de Aleijadinho.

Curioso que Andrade, em sua carta, brinca com a rivalidade entre Minas Gerais e São Paulo, em algumas frases no texto, como "já estou com saudades de São Paulo" e "podem pensar que eu também mineiro do centro estou preparando terreno para aderir à candidatura do Júlio Prestes". "Observe-se […] a disputa entre Minas e São Paulo, impulsada pelas classes oligárquicas destes dois estados, durante a era da chamada 'política do café com leite'", comenta o letrólogo Leopoldo Bernucci, professor e pesquisador na Universidade da Califórnia em Davis.

Em 2 de maio de 1936, Andrade escreveu uma carta para Mário convidando-o a integrar um livro que ele estava organizando em homenagem ao poeta Manuel Bandeira (1886-1968). Uma missiva considerada uma espécie de turning point. "É a partir daí que ele fala da notícia do aceite do cargo de diretor do Sphan. E a correspondência muda totalmente de foco", ressalta Maria. Sphan era o nome original do Iphan — serviço, em vez de instituto.

Importância da correspondência

Para o jornalista André Argolo, coordenador de pós-graduação da plataforma de ensino LabPub e mestre pelo IEB, "a edição de correspondências entre escritores e escritoras tem grande importância para nossa aproximação a momentos históricos, às impressões que essas pessoas tinham dos acontecimentos de suas épocas, a como expressavam esses entendimentos".

"Mas tendo em vista sempre que não são verdades absolutas. São pontos de vista, intencionalidades claras ou não nas cartas, até mesmo contradições em alguns casos", analisa.

Autor do livro "Orgulho de Jamais Aconselhar - A Epistolografia de Mário de Andrade" e membro da Equipe Mário de Andrade no IEB, onde é professor, o letrólogo Marcos Antonio de Moraes avalia que o livro recém-lançado, por trazer documentos inéditos, "tem grande importância" porque "ilumina um ideário original e inovador em torno da preservação da memória coletiva no Brasil".

"Testemunha, por exemplo, a criação do atual Iphan. Mostra dois intelectuais, ligados ao modernismo, engajados em projetos de política cultural. É uma obra que, ainda hoje, nos alerta para a relevância de projetos de preservação da memória material e imaterial, condição para o conhecimento aprofundado de nossos processos históricos e para a implementação de consistentes e democráticas políticas públicas no âmbito da cultura no Brasil", afirma Moraes.

Bernucci acredita que a coleção de cartas "iluminará outras áreas da biografia de Mário e de seus missivistas, ressaltando também diversos fatos relevantes para a cultura e a história do Brasil".

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