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Filmes

Curtas de Humberto Mauro deslumbram pelo talento do velho cineasta

É Tudo Verdade exibe dez curtas do mineiro que trabalhou para a ditadura Vargas sem perder o senso estético

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Por muitos anos, a obra documental de Humberto Mauro ficou esquecida, em parte soterrada pelos seus longas, mas sobretudo pela sombra da oficialidade. Foram trabalhos feitos habitualmente para o Ince, o Instituto Nacional de Cinema Educativo, a partir de 1936, portanto filmes oficiais para todos os efeitos. Pior, sobre eles pesava o fato de terem sido feitos, até 1945, para a ditadura Vargas.

Já passou, no entanto, a hora de conhecer e reconhecer esses mais de 300 curtas como um dos conjuntos mais importantes de filmes do cinema brasileiro. É isso mesmo que o festival É Tudo Verdade promove em homenagem nesta edição.

Cena do filme 'Mauro, Humberto', dirigido por David Neves
Cena do filme 'Mauro, Humberto', dirigido por David Neves - Arquivo Cinemateca Brasileira

No programa estão apenas dez curtas. Do lote ficou de fora o decantado "A Velha a Fiar", o que abre espaço para apreciar trabalhos como os dedicados aos carros de bois. No primeiro deles, "Manhã na Roça: O Carro de Bois", de 1955, Mauro trata desse instrumento tão essencial para o trabalho no campo antes que as máquinas tomassem o seu lugar.

Não só, no entanto. As qualidades que ele enumera para o carro de bois coincidem com o que vê no homem brasileiro: rusticidade, resistência, humildade. O seu cantar é "festivo a vencer caminhos" ou "dolorido a galgar encostas". Sempre infalível, no entanto.

O último "O Carro de Bois", de 1973, é também o deslumbrante último filme de Mauro —o único em cores. Talvez seja ainda o mais pessoal de seus filmes, já que fala de um instrumento superado pelo progresso, antigo, agora desmontado. Como ele próprio, agora um velho cineasta.

O conjunto, no entanto, é bem maior do que qualquer obra em particular. Ali, Mauro documentou a fauna, a flora, a música, a escrita, a aviação, a ciência, as doenças e seus tratamentos —enfim, o Brasil que ali se mostra, em especial nos filmes do período Vargas, até 1945, é um país com passado heroico, artistas e escritores fabulosos, cientistas notáveis, onde se pode perceber o esboço de um projeto nacional.

Para além (ou aquém) de simpatias ou antipatias pela ditadura Vargas, esses filmes têm a ver com cinema, com a capacidade maureana de, nas situações mais ingratas, "galgar encostas", isto é, encontrar maneiras de dar conta do que seja um peixe elétrico, sem perder o sentido estético, ou de "vencer caminhos" alegremente, como na notável filmagem do balé "O Cysne", sobre a música de Saint-Saens —a trilha original do filme de 1936 está perdida.

Se o conjunto, pela variedade e diversidade supera o interesse de cada filme em particular, vale destacar, na série a ser exibida, o belíssimo "Um Apólogo". O filme se abre com a parte educativa, a locução em que Roquette-Pinto, idealizador e presidente do Ince, comenta vida e obra de Machado de Assis.

Segue-se a parte em que o cineasta encena o conto. O apólogo de Machado consiste de um diálogo entre uma agulha e uma linha e é um belíssimo acerto de contas com um mundo onde alguns (as agulhas) abrem caminho para que outros (a linha) brilhem no baile.

Mauro encena a situação montando uma engenhosa caixa de costura, espécie de sucedâneo de um palco teatral, onde se dá o áspero (porém elegante) diálogo entre as duas personagens. Algo se passa na encenação que desdobra a alegoria machadiana, como a sugerir que essas duas criaturas opostas partilham, afinal, a mesma caixa de costura, o mesmo teatro, o mesmo mundo.

É importante notar a diferença entre o trabalho que vai até o fim da ditadura e o que vem depois. Se Roquette-Pinto conseguiu resistir às investidas do Departamento de Imprensa e Propaganda, a polícia política da época, que pretendia colocar o Ince a serviço da propaganda de Estado, a ele cabia escolher assuntos e conduzir a política geral do instituto.

Após sua saída da presidência, em 1946, Mauro gozou de uma liberdade quase irrestrita, o que o levou a produzir a série "Brasilianas", clipes sobre música popular e folclórica brasileira. Nesse período, Mauro trabalhou basicamente em Vargem Grande, sua terra natal, e explorou magnificamente a paisagem mineira.

A série documental do É Tudo Verdade guarda espaço para o documentário "Mauro, Humberto", de David Neves, que dá conta da admiração dos cineastas do cinema novo pela obra do diretor mineiro, que, não sem razão, continua hoje a ser visto como um dos maiores, ao lado de Mario Peixoto, da era clássica do cinema brasileiro.

Humberto Mauro - Programa 2

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