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Nova montagem de 'O Guarani' vem para salvar ópera de si mesma

Entre italiano e línguas indígenas, empreitada que relê obra de Carlos Gomes não é mais polêmica do que original 'Il Guarany'

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São Paulo

O Guarani

  • Quando 12/5, 16/5, 17/5 e 19/5 às 20h; 13/5, 14/5 e 20/5 às 17h
  • Onde Theatro Municipal - pr. Ramos de Azevedo s/n
  • Preço R$ 12 a R$ 158
  • Classificação Livre
  • Autoria Carlos Gomes, Antonio Salvini e Carlo D’Ormeville
  • Elenco Atalla Ayan, Nadine Koutcher, Rodrigo Esteves, Enrique Bravo, Débora Faustino, David Marcondes, David Vera Popygua Ju, Zahy Tentehar Guajajara, Lício Bruno, Guilherme Moreira, Andrey Mira, Carlos Eduardo Santos, Orlando Marcos, Pedro Gustavo Lassen
  • Direção Ailton Krenak e Cibele Forjaz

Talvez a ópera "O Guarani" —"Il Guarany", no original em italiano—, de Carlos Gomes (1836-1896), nunca tenha sido levada tão a sério como na atual montagem, assinada por Ailton Krenak e Cibele Forjaz, em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo.

Adaptação livre do romance de José de Alencar feita por Antonio Scalvini e Carlo d’Ormeville, o libreto da ópera é folhetinesco, e tenta encaixar na linguagem teatral uma trama longa e complexa. Além de reforçar preconceitos e estereótipos, o texto dos parceiros de Gomes apresenta uma narrativa que, em vários momentos, é bastante confusa.

O ator David Vera Popygua Ju, o Peri, e a atriz Zahy Tenthehar Guajajara, a Ceci, durante ensaio da nova montagem da ópera 'O Guarani', de Carlos Gomes, no Theatro Municipal
O ator David Vera Popygua Ju, o Peri, e a atriz Zahy Tenthehar Guajajara, a Ceci, durante ensaio da nova montagem da ópera 'O Guarani', de Carlos Gomes, no Theatro Municipal - Adriano Vizoni/Folhapress

A música escrita pelo brasileiro nascido em Campinas e morto em Belém está, entretanto, em outra ordem de grandeza. Alçado a celebridade internacional quando "Il Guarany" estreou no teatro La Scala de Milão em 1870, Carlos Gomes desfila uma coleção impressionante de técnicas musicais, tanto vocais, quanto instrumentais. E, mais importante, consegue, apesar das limitações do texto, dar certa profundidade psicológica aos personagens centrais.

Tudo isso é tratado com enorme respeito na atual montagem que, antes de desconstruir, constrói. Não há concessões musicais. O Peri do tenor paraense Atalla Ayan —que havia feito Don Alvaro na montagem do Theatro da Paz em 2007— é expressivo e seguro, e a Ceci da soprano bielorrussa Nadine Koutcher —que aqui fez uma "Traviata" em 2018— tem técnica apurada e nuances. Com categoria, Rodrigo Esteves e Lício Bruno dão vida e paixão a Gonzalez e Cacique.

Roberto Minczuk conduz a Orquestra Sinfônica Municipal sem deixar arestas sonoras: a orquestra brilha, plenamente conectada à trama teatral. Se algo puder amadurecer em relação à récita de estreia na sexta-feira, dia 12, é o ajuste fino dos andamentos entre o coro lírico e a orquestra.

A ausência total de teor metafísico no original do século 19 —voltado basicamente ao entretenimento— é suprida pela presença real dos indígenas em todos os pontos da produção. São metafísicas, no plural, canibais e antinarcísicas, que elevam a obra de Gomes a um patamar jamais intentado.

A cenografia de Simone Mina, que assina também os figurinos, projeta no palco a arte de Denilson Baniwa e a sobrepõe ao público, ocupando genialmente o teto e qualificando verticalmente a tradicional representação do "ciclo da vida" ao redor do lustre. Um efeito deslumbrante advém das redes indígenas, multicoloridas, sempre em movimento, usadas para ambientar o povo aimoré no terceiro ato.

Separar corpo e voz, criando duplos para os personagens principais, não é procedimento novo na linguagem teatral, e encaixa-se perfeitamente com o que podemos apreender do pensamento dos povos originários. A presença no palco dos atores David Vera Popygua Ju e Zahy Tentehar Guajajara, ao invés de limitar, libera a voz dos cantores, que podem simplesmente cantar em italiano, sem falsificar seus corpos.

O incrível primeiro ato talvez seja o ponto alto da escrita de Gomes em "O Guarani". Ele termina com o extraordinário dueto entre Peri e Ceci: a aproximação entre a jovem filha do fidalgo português e o indígena é lenta e complexa. As personagens exprimem timidamente suas individualidades, interagem, e, no ponto culminante, trocam de melodias entre si. Tudo se conecta com o tema final da famosa abertura orquestral, ouvida 40 minutos antes, enfim cantado.

Como um interlúdio, entre os atos, surge do fundo do palco, pela primeira vez, o som instrumental do grupo Guarani do Jaraguá Kyre’Y Kuery. Sua estabilidade, em ciclos de 10 repetições (com mudança sempre nas duas últimas) produz um efeito belo e intenso.

A cada final de ato essa presença se torna mais viva: primeiro os corpos e olhares, depois os sons, e enfim as vozes: o canto de línguas do Brasil. A montagem só parece passar um pouco do ponto quando tenta se justificar discursivamente: algumas frases-manifesto, projetadas em português —como "o antropólogo moderno já nasceu antigo"— conflitam com as legendas e carregam por demais certas cenas.

Isso, entretanto, não prejudica o sólido fundamento poético da proposta. Entre o italiano e as línguas indígenas, o português talvez não tivesse mesmo lugar ativo: poderia subsistir apenas como legenda –aquele apoio generoso que denota as nossas limitações.

A montagem é forte, mas nada tem de polêmica. Polêmico é o original. "Os Guaranis" chegam para resolver "Il Guarany"; talvez, até mesmo, para salvá-lo: salvá-lo de si.

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