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'O Homem Cordial' narra guerras culturais com excesso de bons modos

Filme de Iberê Carvalho com Paulo Miklos peca por falta de rudeza em transmitir sentimento selvagem que quer passar

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O Homem Cordial

  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Paulo Miklos, Theo Werneck, Bruno Torres
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Iberê Carvalho

Já no título, "O Homem Cordial" enuncia sua ambição de interpretar o Brasil contemporâneo, desta vez em imagens. Uma fábula: durante a tentativa de linchamento de um menino negro, ele é protegido pelo músico Aurélio, papel de Paulo Miklos. A ação, registrada em celular, resulta na morte de um policial e se difunde nas redes, a coisa de sempre.

À noite, num show, Aurélio interpreta uma de suas músicas, de estilo áspero, combativo. Ao que parece, faz muito sucesso até esse dia. Desta vez é expulso do palco sob vaias e objetos atirados pela plateia.

Mais tarde, num restaurante, ele também será hostilizado. Por fim, é francamente acusado por um grupo de agroboys —ou algo similar— bombados, numa caminhonete tipo tranca rua, que o acusa de protetor de criminosos e coisas de modo bem pouco amigável.

Paulo Miklos em cena de 'O Homem Cordial'
Paulo Miklos em cena de 'O Homem Cordial' - Divulgação

Esse trailer já dá alguma pista das ambições deste filme. Afinal, homem cordial é um conceito criado por Sergio Buarque de Holanda, um dos célebres intérpretes do Brasil. Ele mesmo corrigiu o entendimento popular dessa ideia de homem aberto ao outro, amigável, afável e precisou o que queria dizer: cordial é alguém que age com o coração, emocionalmente, que talvez aja duas vezes antes de pensar, como sugeriu outro Buarque de Holanda, Chico desta vez. Ou, indo até mais tempos mais recentes: age duas vezes, não pensa nunca, publica nas redes e, se der rolo, choraminga umas desculpas.

Resumindo, apenas esse trailer já nos coloca diante de um universo que busca entender um Brasil contemporâneo, violento e atritivo. Lá estão o artista rebelde, o menino negro, a mãe do jovem negro —que também xinga o cantor—, os agroboys desembestados, a polícia idem, um policial morto em ação, a classe média enxotando pobres dos restaurantes, a histeria e tudo mais.

Está tudo lá, numa descrição infelizmente nada inexata do que seja o Brasil dos anos recentes. A menos que cordialidade signifique gritaria, agressão gratuita, linchamento, irracionalidade desembestada, massacres em geral, assassinatos de jovens negros pela polícia etc, parece que antigos entendimentos do Brasil não conseguem chegar ao momento contemporâneo. Nisso tudo talvez seja impossível discordar do novo filme de Iberê Carvalho.

Ao mesmo tempo, também é impossível não constatar que até aqui estamos patinando no óbvio. Pode-se até olhar com ironia para o antigo conceito de homem cordial, mas aonde tudo isso nos leva?

Está aí um problema, ou talvez seja este o limite do "O Homem Cordial": tudo está no lugar, até demais. Não só as interpretações —Miklos, como de costume, se sai muito bem—, a direção de arte, o roteiro, a direção, enfim. Mas em nenhum momento "O Homem Cordial" consegue produzir o encanto da cena de abertura de "O Último Cine Drive In", de 2015, por exemplo, em que um filho invade à força um pronto-socorro na tentativa de ver a mãe, desafiando o rigor que as leis hospitalares reservam a pacientes pobres.

É verdade que o filme é datado de 2019 e talvez adiantasse algo que na época ainda não se podia discernir facilmente na situação brasileira. Também é certo que a inclusão de um popstar no centro dos eventos legitima algo que está no centro das preocupações da extrema direita. É disso que se fala quando se fala de agroboys, violência policial aprovada, massacre de negros etc.: trata-se de uma guerra cultural, por isso atingir a cultura metropolitana, desenraizada e laica é muito importante. E um astro pop representa tudo isso muito bem.

Apesar disso, talvez o aspecto muito polido, muito civilizado, digamos assim, do filme, conspire contra o sentimento que, afinal, busca transmitir. Não se pode dizer que é um defeito, mas algo que conspira contra aquilo que "O Homem Cordial" procura mostrar.

Nesse sentido, ele traz quase o inverso da rudeza onírica, selvagem, exasperada de um "Mato Seco em Chamas", de outro cineasta brasiliense, Adirley Queiroz, que, por sinal, foi muito pouco visto nos cinemas. E "Mato Seco" dá conta da insânia nacional com menos bons modos, porém mais alcance que "O Homem Cordial".

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